Para a jornalista e professora, Sarita Pereira, olhas as marcas ainda visíveis nas montanhas, nos locais que tiveram os maiores deslizamentos de terras, mostra que as cicatrizes na natureza ainda não se fecharam, assim como as cicatrizes de quem viveu aquele momento: “Não parece que já se passaram dez anos, porque a gente ainda olha para as montanha e consegue ver as cicatrizes daquele dia”.
A primeira grande ocorrência foi na tarde do dia 11, por volta das 16h, quando um prédio de três andares, localizado na Rua São Roque, em Olaria, desabou, matando uma criança e um idoso.
Mas a chuva estava apenas começando, por volta das 21h daquele dia caíram algumas pancadas fortes, chegando às estações meteorológicas do município a registrar mais de 80 milímetros, um índice que, segundo o coronel Roberto Robadey, que na época era chefe da Defesa Civil de Nova Friburgo, era considerado crítico.
Se 80 milímetros já era um estágio crítico, não é difícil imaginar os estragos causados pelo temporal daquela noite. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet), em 24 horas foi registrado um volume de chuva de 182,6 milímetros, com maior precipitação na madrugada do dia 11 para o dia 12 de janeiro. Sendo que no dia anterior já havia sido registrado que o volume de chuva passou dos 90 milímetros.
Foram muitos deslizamentos de terra no município, além da enchente, que mudou o curso de rios e chegou a ultrapassar três metros em alguns bairros da cidade. Bairros e até distritos inteiros ficaram ilhados, uma vez que as estradas estavam bloqueadas por uma quantidade tão grande de terra, que a única forma de acesso era por meio de helicóptero.
Em números oficiais, 917 pessoas morreram na tragédia que atingiu a Região Serrana, sendo cerca de 400 somente em Nova Friburgo. Além do município, as cidades de Teresópolis, Petrópolis, Bom Jardim, Areal, Sumidouro e São José do Vale do Rio Preto também foram fortemente atingidas pelas chuvas que começaram naquele dia 11 de janeiro. Além disso, existe a estimativa de mais de 100 pessoas continuam desaparecidas até hoje na região.
Leia o relato de algumas pessoas que enfrentaram aquele momento:
Sarita Pereira, jornalista e professora, moradora da Chácara do Paraíso
Cheguei tarde em casa, por volta das 22h. Lembro bem que a chiva tinha parado, o que me deu um certo alívio, mas quando era quase meia noite voltou a chove, foram três pancadas fortes e a última parecia que o mundo ia acabar. Foi uma noite longa, como moro na Chácara eu conseguia ver os raios. A luz acabou num determinado momento, mas tudo ficava claro com os clarões dos raios. A laje da minha casa na época não tinha telhado e começou a encher muito com a chuva, então tivemos que subir para quebrar toda a lateral. Dali de cima, conseguimos ouvir uma barreira que desceu no Acampamento Paraíso e ouvir as pessoas gritando. Foi uma noite de horror.”.
No dia 12 acordei cedo para ir trabalhar e estava um silêncio absoluto. Comecei a caminhar em direção ao ponto de ônibus por volta das 5h30 pelo asfalto da RJ-150 e vi pessoas desnorteadas, sujas de lama e carregando enxadas. Desci então a pé da Chácara e vi outras pessoas chorando e pedindo ajuda, foi quando vi o que havia acontecido no Acampamento, estava tudo tomado pela água, alguns corpos sendo retirados da lama. Segui até o Bom Jesus 2, onde a situação era também muito ruim. Quando cheguei num trecho chamado Biquinha foi que descobri que não havia passagem nem pelo Amparo e nem por Nova Suíça, porque caíram barreiras nas estradas,
Ficamos sem luz aproximadamente 10 dias, a gente chegou a comprar velas em casas religiosas, porque não tinha mais vela, nem no mercado ou em locais próximos. Nossa água é de nascente, mas a bomba queimou e precisamos comprar água, o mesmo aconteceu com o gás. Só consegui chegar ao centro da cidade seis dias depois da tragédia.
Não parece que se passaram dez anos, porque a gente ainda olha para as montanhas e consegue ver as cicatrizes ali, se a gente passar pelo São Lucas ainda consegue ver, assim como em Campo do Coelho, Conquista, a gente ainda consegue ver os lugares que foram mais atingidos, eles não se recuperaram assim como as pessoas que viveram tudo isso. Costumo dizer que a cicatriz da natureza que ainda não fechou é a cicatriz dos friburguenses que viveram aquela noite, mas eu espero que a gente consiga renascer, o povo foi muito forte lutou pela cidade, de fato a cidade se uniu, foi um fôlego novo de esperança que uniu todo mundo. Contudo, ainda há muito daquele dia na memória de todos, infelizmente”.
Priscila de Lima, jornalista, na época morava no centro de Nova Friburgo
Por volta das 22h, comecei a receber ligações informando que muitas ruas da cidade estavam alagadas. Logo depois tivemos queda de energia, a comunicação foi ficando cada vez mais difícil e a madrugada foi tomada por gritos e estrondos, que não sabíamos ao certo se eram provenientes de trovões ou de deslizamentos de terra. Quando o dia amanheceu, me deparei com um amontoado de lama e entulhos diante da janela do meu apartamento. Um prédio havia acabado de desabar e vizinhos clamavam por ajuda. Desci para ajudar e me senti pequena e impotente diante de tamanha destruição.
Cada passo que eu dava pelas ruas da minha cidade, o sofrimento aumentava. Chorei, como chorei! Mas ao mesmo tempo aprendi a ser forte. Hoje admiro todos os friburguenses que tiveram força para recomeçar e fizeram da nossa cidade um lugar ainda mais especial”.
Coronel Roberto Robadey, ex-comandante-geral do Corpo de Bombeiros do Estado do Rio de Janeiro que na época era chefe da Defesa Civil de Nova Friburgo
É difícil escolher o momento mais impactante, foram muitos em cada lugar que eu passo em Friburgo eu me lembro de uma coisa. Eu passei a noite no Bom Pastor, (Vila Amélia), numa picape dos Bombeiros. Nós ficamos agarrados, porque não dava para seguir e o lugar que a gente tinha acabado de passar vindo do Vale dos Pinheiros tinha caído duas barreiras. Pela manhã a gente viu que eram bem grandes e que não dava para voltar. Tentamos sair pela SEF, pulamos um portão e descemos a pé. Na Avenida Galdino do Valle Filho, quando eu vi a casa da minha mãe, que mora às margens do bengalas desde 1986, eu pude perceber que a enchente era muito maior do que todas que nós já tínhamos visto.
Os bombeiros de todo o estado que vieram para atender esse desastre, eles tinham uma dedicação total, a maioria não queria voltar para casa, eram cerca de 40 frentes de trabalho no início e cada equipe tinha ali uma dedicação total e ouviam com atenção os relatos das famílias que ainda estavam buscando seus entes desaparecidos. Os bombeiros foram verdadeiros heróis, tenho muito orgulho de ter comandado esses heróis, especialmente depois que acabei me tornando comandante-geral.
Toda vez que essa tragédia faz aniversário eu posto alguma coisa e recebo alguns comentários de pessoas dizendo que queriam esquecer. Eu aprendi uma coisa logo depois, em março de 2011, quando houve um tsunami no Japão e pessoas da Defesa Civil estiveram lá para ver o que estava sendo feito. Um policial japonês me relatou pela primeira vez que eles encontraram depois do tsunami vários marcos de pedras de 300 anos atrás dizendo para não construir abaixo deles, porque já havia chegado um tsunami até ali. Esses marcos estavam em florestas e cidades inteiras foram construídas abaixo deles.
Eu acho que o grande aprendizado que temos que ter é que nós não podemos esquecer o aconteceu em Nova Friburgo, porque pode acontecer de novo, a ciência diz que os eventos climáticos extremos estão se tornando cada vez mais frequentes e mais intensos e é preciso que não se esqueça, que os governantes não esqueçam, que invistam nas suas Defesas Civis, que a população participe das decisões, se engaje nos processos de Defesa Civil e continue vigilante para que isso não se repita nessa magnitude. Teremos chuvas tão ou mais fortes, mas é preciso que a população esteja preparada, saiba como proceder para evitar todas essas perdas que nós tivemos em 2011”.
Coronel João Paulo Mori, estava como comandante do 6º Grupamento de Bombeiros Militar de Nova Friburgo
Sai de casa por volta das 4h no dia 12 e tive que ir para o quartel a pé, porque não tinha como passar de carro, nem de moto. Durante a noite eu já estava sem luz e telefone. Cheguei no quartel por volta das 5h30, foi quando eu tomei ciência do que estava acontecendo, corri para a Rua Cristina Ziede, no Centro, onde três bombeiros tinham sido atingidos por um deslizamento enquanto faziam o resgate das vítimas do desabamento de um prédio
Consegui fazer um sobrevoo na cidade no mesmo dia e quando vi a cidade lá de cima, no dia 12, eu falei: ‘Meu Deus morreu muita gente’. Só do centro de Nova Friburgo até Campo do Coelho tinham sete barreiras caídas que não tinha nem como chegar na localidade, nada funcionava, nem rádio, e lá já havia 30 pessoas mortas, levadas para a capela.
No primeiro dia foi aquela correria, todo mundo perdido, teve que vir gente de outros quartéis, porque teve que dividir também com Teresópolis, Petrópolis, Bom Jardim, que foram vários os municípios atingidos. A impressão quando eu voltei do vôo de helicóptero, naquele reconhecimento aéreo, foi de desespero, de impotência. O que eu vou fazer? Como vou organizar isso? O comandante-geral veio para a cidade, o vice-governador Pezão e um efetivo de coronéis bombeiros, porque só o quartel daqui não tinha condições de responder, nem o Estado teve condições de dar o apoio sozinho, teve que pedir a União, com a vinda do exército, aeronáutica, marinha”.
Johnny Maycon, prefeito de Nova Friburgo
Sobre as ações do novo governo para impedir que o desastre se repita, Johnny Maycon diz: “Além do investimento na Defesa Civil, vamos implementar medidas de mapeamento e monitoramento contínuo das áreas de risco para que possamos tomar ações planejadas com o intuito de prevenir eventos climáticos. Vamos também, através da secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano Sustentável, atuar permanentemente fiscalizando construções que coloquem em risco a vida humana”.