Gabriel Chalita, colunista do DIA
Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação
Por Gabriel Chalita*
Era o despedir de um dia no Rio de tanta beleza. O bairro era o que já havia inspirado a canção de uma menina linda, cheia de graça. Uma menina que vem e que passa num doce balanço a caminho do mar. A rua era uma entre tantas onde as gentes se locomovem ou param. Conversam ou silenciam.

Eu estava em uma calçada, quando vi, na outra, uma das tantas mulheres que vivem nas ruas se ajoelhar. Era uma oração, talvez. Foi o que pensei. Era um descansar o mundo. Era um desabar na barulhenta cidade.

Fiquei preso àquela imagem. Os cabelos desajeitados embaralhavam, ainda mais, os seus pensamentos. A pele exaurida pelos anos apresentava a idade. Era uma velha mulher. E, de cócoras, com as pernas se abrindo para abaixar mais, ela levou as mãos a uma água suja que ficava na rua rente à calçada. E, fazendo concha, bebeu com fervor a ausência de humanidade para com ela.

O movimento das mãos foi me silenciando, me emudecendo. Os meus pensamentos que, um pouco antes, viam a lua que se adiantava, naquele dia, já não resistiam a nenhum outro pensar. Quem era aquela mulher? Como ela chegou até ali? O seu vestido branco sujo de abandono, os seus pés descalços de qualquer cuidado, seu sorriso sem significado. Era o que eu via. Ela tinha a idade da dor. E eu a idade da omissão.
Nada fiz. Apenas, vi. Pensei em comprar água, pensei em oferecer alimento, pensei em cuidar dela. E nada fiz. O tempo foi escapulindo e eu nada fiz.

A demora da minha decisão fez com que ela caminhasse na solidão da rua e se perdesse no mundo grande onde ninguém vê ninguém. Fiquei imaginando o seu nome, a sua dor, o seu destino. Dormi com ela, naquele dia, e acordei em desalinho com os meus afazeres.

Ela é uma e eu sou tantos. Ela é muitas e eu sou apenas um. Tenho voz e não digo, tenho braços e não abraço, tenho coração e amo pouco.

Lembrei de uma poema de Mário Quintana que escolhia as palavras para escolher a vida, a vida simples, a vida pura como a água bebida na concha das mãos. A água de Quintana é água cristalina. A água da mulher que me acompanha é água dos restos de um dia sujo, dos cantos das ausências, de uma mente sem condições de compreender.

Perto dali, havia uma torneira. A torneira do mundo estava seca para ela. Sua cabeça, tão sem cuidados, já não conseguia perceber. Foi o que vi. Foi o que senti. Se a ela pudesse dar um nome, chamaria de Maria. Não sei por quê. 
Ou, talvez, saiba. Talvez queira que o sagrado a proteja de nós, que pouco fazemos, por medo ou por acomodação.

Bebi em fontes límpidas na minha vida, mergulhei em cachoeiras abundantes, nadei em águas reconfortantes. E Maria? Como foi o seu ontem? Como serão os dias que virão?

Na canção de Vinicius e de Tom Jobim, a Garota de Ipanema, quando passa, faz com que o mundo inteirinho se encha de graça por causa do amor. Decidi acordar o dia e ir à mesma rua procurar Maria.
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Quem sabe ela esteja. Quem sabe eu não fique petrificado e plante no mundo alguma bondade. Quem sabe ela me ensine que eu não deva terminar dia algum de minha vida sem oferecer, na concha das minhas mãos, um pouco de amor.

De cócoras, pariu o abandono. Onde mora Maria? Onde mora o amor.
 
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*É escritor e professor