Pedro Serrano Divulgação

A legalidade da exigência feita por alguns entes federativos de comprovação de vacinação contra covid-19 para que as pessoas possam frequentar ambientes coletivos fechados tem sido muito debatida. Mais do que uma medida constitucional e lícita, é dever do Estado impor tal condição para garantir a saúde da coletividade em um contexto de pandemia.
O argumento contrário a essa imposição tem se estabelecido na base de que “o Estado não pode obrigar ninguém a se vacinar”. É verdade. E também não pode punir alguém por não ter se vacinado. Mas exigir carteira de vacinação para que ingresse em ambientes coletivos fechados nada tem a ver com a obrigatoriedade da vacinação ou punição.
O Estado não pode compelir com uso de força a pessoa a se imunizar. As pessoas têm o direito de gerir seu corpo da forma que lhes convier. Mas não é disso que se trata. Uma vez que um contingente da população decidiu não se vacinar, exercendo seu direito de liberdade, o Estado precisa garantir o direito à vida e à saúde dos demais, impedindo, sim, a entrada de não vacinados em ambientes coletivos fechados.
A liberdade a que tantos apelam para criticar essa restrição precisa ser entendida de forma mais larga. Liberdade não se confunde com direito de liberdade. Liberdade é um conceito filosófico que pode ser tratado de várias formas. O indivíduo pode reivindicar usar das prerrogativas físicas do seu corpo até o limite que elas lhe possibilitarem. Mas isso é diferente de direito de liberdade.
Em primeiro lugar, o conceito de direito pressupõe universalidade, ou seja, direito não se confunde com privilégio. Em segundo lugar, o direito, nesse sentido, já carrega consigo, de forma inerente, a ideia de limite, ou seja, o famoso “meu direito termina onde começa o do outro”. Por isso podemos dizer que o direito é sempre uma conduta limitada, que tem fronteira. Logo, o direito de liberdade nunca é absoluto porque todo direito tem limites, inclusive determinados pelos direitos dos outros.
Sob a perspectiva do liberalismo, a ideia primária que se teve a respeito de liberdade estava conectada à ideia de propriedade – propriedade do próprio corpo. Livre, portanto, é o indivíduo que é dono do próprio corpo e que dele pode dispor como bem quiser. No entanto, como o direito é universal, eu tenho direito a dispor do meu corpo, mas não tenho direito de dispor do corpo alheio. E como a todo direito corresponde um dever, eu tenho o dever de respeitar a disposição que o outro faz do próprio corpo.
Eu posso não me vacinar e assumir o risco de ficar doente, mas não posso impor esse risco aos demais. Isso vale, por exemplo, para a regra de não fumar em ambientes públicos fechados e a de não dirigir alcoolizado. Cada um dispõe do próprio corpo e gerencia a própria saúde, na medida em que não afete o corpo e a saúde do outro.
Não se trata, portanto, como muitos têm falado, de sobreposição de um direito coletivo a um direito individual. Embora eu acredite que o direito de saúde coletivo pode, nessas circunstâncias, ser tido como superior ao direito individual de liberdade, é o direito individual à vida e à saúde dos que tomaram a vacina que se sobrepõe ao direito de liberdade dos não vacinados.
Ademais, a interpretação do direito de liberdade como algo ilimitado compromete a própria concepção de sociabilidade. A sociedade se desfaz diante da lógica de que cada um é livre para fazer o que quiser, inclusive invadir a liberdade do outro. Isso remete à barbárie, à lei do mais forte, à guerra constante do homem contra o homem.
Aliás, o liberalismo clássico, a que muitos querem se apegar para defender seus pontos de vista terraplanistas, nunca pregou um direito de liberdade absoluto, ilimitado, pois isso implicaria a ausência do vínculo social e da própria ordem mínima necessária à paz social.
É preciso deixar claro e distinguir as coisas. Exigir carteira de vacinação em determinados ambientes não é o mesmo que obrigar o indivíduo se vacinar. Obrigar a se vacinar seria coagir fisicamente, o que não ocorre.
O estabelecimento de restrições para o ingresso em ambientes coletivos fechados se dá justamente para proteger a vida e a saúde como direito individual das pessoas. Não se pode inverter a relação, trancando em casa, por medo de contaminação, aqueles que se vacinaram e se preocuparam com a coletividade, para fazer valer o suposto direito daqueles que optaram conscientemente por não se vacinar.
Em síntese, a minoria que não toma vacina não pode impedir o exercício pleno de liberdade da maioria que se vacinou.
Pedro Estevam Serrano é Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na graduação , mestrado e doutorado da PUC/SP, sócio do escritório "Serrano, Hideo e Medeiros Advogados