Márcio Righetti é escritor, professor de cultura iorubá, o Babalorixá Márcio de Jagun é coordenador da Coordenadoria da Diversidade Religiosa, da Prefeitura do Rio.Divulgação

Soa até fictício o fato de que a primeira Constituição Republicana brasileira, de 1891, já tenha consolidado a laicidade do Estado e a liberdade de culto diante do que ocorre no país hoje. Paradoxalmente à modernidade da Carta Magna da época, a sociedade brasileira vê crescer, em pleno Século XXI, o número de denúncias de casos relacionados à intolerância religiosa.
Um dos equívocos de base dessa concepção, na primeira legislação federal, foi delegar às gestões regionais a regulação da ordem pública. Dessa forma, nasceu a essência de fundamentação, ou de fundamentalismo, dos que queriam dificultar a liberdade de crença.
As leis de postura e ordem pública, estas de âmbito distrital e municipal, foram estabelecendo restrições ao funcionamento, limites de horário, exigências sanitárias impossíveis de serem atendidas pelos adeptos do Candomblé naquelas circunstâncias. A lei era como a espada, feria, matava e intimidava. E o uso da lei, muitas vezes servia (como ainda serve), para legitimar interesses de grupos econômicos, políticos, sociais e religiosos, em detrimento da multiplicidade e da diversidade da população.
Muito embora o Brasil seja um país laico desde 1890 e a plena liberdade de crer e de não crer tenha sido assegurada em 1988, o crime de intolerância religiosa só aparece em nosso ordenamento jurídico em 1997. Há um enorme lapso temporal a demonstrar a negligência com que as instituições trataram o assunto. O resultado é que as religiões afro, assim como as indígenas, foram as mais perseguidas e atacadas neste solo, antes e após a laicidade.
É importante frisar que outras matrizes religiosas também foram perseguidas ao longo de nossa história. Os donos desta terra, os indígenas, foram dizimados, violados em todos os seus direitos, alijados, expropriados, e até escravizados até a segunda metade do século XVI.
Desde a Independência, em 1822, muitos foram os estrangeiros que imigraram para o Brasil. Ciganos, judeus, muçulmanos e protestantes estavam entre os que vieram. Nenhuma destas pessoas foi plenamente acolhida, reconhecendo-se e respeitando-se suas diversidades, costumes e crenças. Muitos eram levados a omitir suas pertenças culturais, ou a realizar suas devoções e modos de vida na clandestinidade.
Outro ponto importante a ser mencionado nesse contexto é que o regime democrático não se destina apenas a atender aos interesses da maioria da população. A democracia pressupõe que o representante seja eleito pela maioria, mas que a gestão deste seja destinada a equacionar a diversidade e às necessidades da população como um todo. Em razão disto, são necessárias ações e políticas públicas que visem a reparação de desigualdades e o atendimento de grupos vulneráveis que já estão, ou sempre estiveram à margem da sociedade (sendo estes majoritários, ou minoritários).
Daí a importância de medidas que conseguimos implementar durante nossa atuação na Secretaria Estadual de Direitos Humanos, na gestão do então secretário Átila Alexandre Nunes, como a Decradi (Delegacia Especializada em Crimes Raciais e Delitos de Intolerância Religiosa), assim como os Navir (Núcleos Especializados em Atendimento das Vítimas de Intolerância Religiosa) e a criação do primeiro Conselho Estadual de Promoção da Liberdade Religiosa do Brasil.
Enquanto houver racismo, intolerância, discriminação, violência direcionada a determinados grupos e gêneros, haverá necessidade de medidas reparadoras para que haja, de fato, igualdade social. O trabalho em prol da liberdade religiosa é, sem dúvida, um dos maiores desafios dentre os chamados Direitos Humanos. Somente com medidas multidisciplinares, ações afirmativas e políticas de estado, poderemos assegurar direitos e corrigir graves desvios sociais e administrativos sobre o tema. É hora de recomeçar. Porém, um recomeço que não seja começar de novo; mas, começar diferente.
Márcio Righetti é escritor, professor de cultura iorubá, o Babalorixá Márcio de Jagun é coordenador da Coordenadoria da Diversidade Religiosa, da Prefeitura do Rio.