Alfredo Attié, desembargador do TJSPDivulgação

No conto “O Espelho”, publicado 15 anos antes da fundação da Academia Brasileira de Letras (ABL), Machado de Assis, sob a irônica aparência de esboçar nova teoria da humanidade, pôs a nu, com maestria, a realidade das relações de submissão escravista, criticou a configuração da razão ocidental, invertendo a ordem de dependência do negro e do branco, e indicou a injustiça dos modos de ascensão social.

Sem a estrutura social e política da escravidão, apontava Machado, não há presença nem importância do senhor e de seus símbolos. É o branco que depende do negro para existir e aparecer, não o contrário, como desejava a ideologia da política escravocrata brasileira.
O escritor negro, a seguir, vai fundar a ABL - que o branco ocupará exclusivamente - para celebrar a armação da língua literária brasileira de que foi artífice. Mais de cem anos passados dessa subversão política e poética, a ABL abre suas portas para receber Gilberto Gil, cuja posse vai acontecer amanhã, dia 8 de abril.

Gil, de todos os importantes membros de sua geração musical, é o que talvez mais se tenha preocupado em encontrar um modo original de comunicar o manancial de suas paixões e ideias, numa linguagem mais plástica, inventiva e constitutiva de uma radicalidade territorial. Sem se preocupar demais com as convenções gramaticais impositivas e com suas regras arbitrárias, Gil buscou novos modos de expressão, de conexão do aqui com o mundo, mas sem deixar de reconhecer, como Machado entendia, que seria no jogo do trabalho popular que estaria o fundamento de uma ética e de uma estética autênticas.
O baião, como outras formas musicais ricas do amálgama afro-indígena brasileiro, viria debaixo do barro do chão da pista onde se dança. Há um mundo em que os seres humanos performam sua existência, que não é neutro nem consensual, em que a dança dos seres do mundo se desenrola. Contudo, da música que contamina o ritmo da vida são donos não os proprietários arbitrários e abusivos da terra e das gramáticas, mas os que a trabalham e que carregam a esperança de mudança, de justiça, de rearranjo político e social. Daí porque, enriquecendo a crítica de Machado, Gil vai apontar os paradoxos dessa propriedade legitimada por um sistema jurídico injusto – no fundo, antijurídico – por meio de uma ironia poética fina e sútil.
Quando Gil vestir o fardão da ABL, não será mais o espelho que estará a sua frente, mas o povo brasileiro. É a identidade de uma língua que se refaz todos os dias, mas que se afirma na linguagem dos invisíveis que se tornarão presentes e protagonistas sob seu novo fardão.
Ao assumi-lo, Gilberto Gil recriará a imagem verdadeira de uma nação plural e livre na expressão, dona de sua cultura e de sua história ultrajada. Que se afirma em sua africanidade, tropicalidade e indigeneidade ancestral. Recomporá a identidade do povo brasileiro.
Alfredo Attié é desembargador no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), presidente da Academia Paulista de Direito, doutor em Filosofia, pesquisador e escritor.