Allan Borges é Subsecretário de Habitação, Mestre pela FGV e Doutorando em Direito da Cidade pela UERJ Divulgação

Até que ponto uma política de habitação de interesse social pode ser baseada em evidências e vivências? Inicialmente me parece essencial dizer que uma maior ou menor eficiência e eficácia dependerá da forma como o problema é diagnosticado e de como a política é concebida, considerando eventual flexibilidade metodológica e fugindo dos dogmas e das fórmulas prontas.
Há nove meses, quando generosamente fui convidado pelo então secretário estadual de Infraestrutura e Obras, Max Lemos, a preocupação era edificar um programa habitacional que abarcasse as dimensões éticas, de gênero e etária que se somam às problemáticas de classe, estratificação e exclusão social. Um dos pontos mais interessantes foi a liberdade técnica que me foi outorgada para trabalharmos com base em evidências e vivências em coexistência. Assim, procuramos romper com a lógica do sistema e ampliar a reflexão, sem fechar os horizontes para uma política pública que reduza as desigualdades e enfrente o déficit habitacional qualitativo e quantitativo.
Essa coexistência é uma das marcas indeléveis na sociedade fluminense. Foi contrariando o ceticismo radical, em parte expresso na história de média-longa duração do Rio de Janeiro, que construímos o “CASA da GENTE”, uma resposta possível às descontinuidades, à fragmentação e ao isolamento setorial da política de habitação de interesse social. O programa foi constituído a partir de três especiais linhas programáticas: 1) produção habitacional; 2) assistência técnica combinada com melhorias executadas nas moradias de famílias de baixa renda residentes de favelas, com o Projeto Na Régua; 3) reforma de conjuntos habitacionais construídos há mais de dez anos com o propósito de interesse social.
Neste artigo, me deterei ao eixo de assistência técnica combinada com melhorias habitacionais, que é o caso do projeto “Na Régua - arquitetura acessível, moradia digna”. Ele fora elaborado a partir do conceito de gestão social, pois estabelece articulações entre ações de intervenção e de transformação do campo social. Trata-se de uma noção mais ampla, que não se restringe ao âmbito político-governamental. A gestão social proporciona condições de emancipação dos indivíduos, baseando-se na democracia deliberativa e na formação da consciência crítica dos moradores de favelas.
O desenho do projeto é ancorado em um censo de inadequação habitacional, busca ativa nos domicílios revelados pelo censo, trabalho técnico-social para inclusão em políticas socioassistenciais e implantação de escritórios de arquitetura e engenharia social.
Em cinco meses, as equipes técnicas do projeto realizaram 9.873 entrevistas, mobilizando cerca de 28 mil moradores. Até o momento, a pesquisa já foi aplicada em mais de 80% dos 12 territórios selecionados, como Serrinha, Mangueira, Rocinha e Parque Maré. O levantamento indicou que 40% das famílias estão classificadas em risco social elevado, com base no Índice de Pobreza Multidimensional desenvolvido pelo PNUD.
Cerca de 26% dos domicílios investigados não possuem módulo hidrossanitário completo (banheiro com pia, chuveiro e vaso sanitário). Para além disso, 17% das famílias relataram problemas de umidade e falta de ventilação. Neste caso, o fenômeno janela-porta é muito presente e acentua a assunção de doenças respiratórias. Também constatamos que 62% das moradias têm abastecimento de água inadequado e 46% possuem esgotamento sanitário irregular.
A pesquisa também revelou a predominância de famílias chefiadas por mulheres pretas com escolaridade até o Ensino Fundamental completo. Já a renda média dos territórios é de R$ 564, sendo que 29% das famílias entrevistadas estão em situação de pobreza extrema (renda per capta de até R$ 100 mensais).
O mercado de alugueis é expressivo. Na Mangueira, por exemplo, ele é realidade em mais de 20% dos domicílios. Dos proprietários, majoritariamente 87% acreditam que, se ganharem o título de propriedade, seu imóvel será mais valorizado.
Com esses números em mãos, foi possível verificar que, das mais de nove mil entrevistas realizadas, mais de cinco mil famílias possuem perfil para receber indicação com fins de melhorias habitacionais. E, a partir deste importante levantamento, iniciamos a segunda etapa do projeto: atendimento social e visita técnica dos engenheiros e arquitetos às famílias mais vulneráveis e que vivem em domicílios com inequação hidrossanitárias ou insalubridades.
Com isso, esperamos dar os próximos passos para promover as melhorias habitacionais necessárias para que essas famílias passem a viver com dignidade. É inadmissível que, em pleno século XXI, ainda haja moradias que sequer têm banheiros em cidades urbanizadas.

Allan Borges é subsecretário de Habitação, mestre pela FGV e doutorando em Direito da Cidade pela UERJ