Era uma vez, uma vendedora de flores, vizinha minha. Era uma vez, uma cidade pequena em que o vaivém das ruas organizava o vaivém das conversas. Sabíamos os nomes, as presenças e as ausências uns dos outros. Pertencíamos tanto à cidade que era impossível imaginar qualquer partida.
Na cidade, tínhamos que conviver com palavras infelizes, que afastavam alguma bondade, e com bondades iluminadoras, que afugentavam as infelicidades e que faziam os dias. Na pequena cidade, almas grandes traziam um mundo de mistérios e imaginações ao mundo em que existíamos. Ao mundo em que éramos.
Olhando, hoje, para uma casa de flores, lembrei-me de Aparecida, a florista. Eu, menino, gostava de ver a florista entregando histórias de amor. Era uma portinhola, apenas. E, por ali, passavam os que queriam não passar na vida de alguém. Aparecida ajudava na escolha das flores e, com as mãos enfeitadas de muita elegância, escrevia os textos de amor que deveriam ser entregues com o ramalhete. Ela ouvia o dito e ditava de outra maneira, romântica que era. E ninguém desconsiderava. E era ela mesma quem fazia as entregas.
Eu, sempre esperador de sua saída, observava o sorriso decente, os cabelos cuidadosamente arrumados, a maquiagem, o cheiro de quem entende de sedução. O salto alto, inseparável de seus dias, e as echarpes que pareciam combinar com as cores dos sentimentos que iam com ela, em ruas de calçadas velhas, ladeando paralelepípedos rachados de história.
Ouvia eu, sentado na calçada e comendo algum tempo, sua explicação para alguma que negou pedido. "Calma, Altemar, vamos apenas adiar a alegria, Shirley tem suas razões para a desconfiança". Altemar partia partido, porém agradecido. Shirley era a cabeleireira, sofrida de um desmanche. Queria nada do amor. Aparecida sabia que era uma questão de tempo, inda mais que Altemar era um homem de bem. Com João, foi mais simples. Demitiu sem avisos o susto de um abandono e se esmerou para ter Ana Lúcia, uma linda professora, contadora de histórias voluntária no hospital em que ele, João, medicava. Aparecida anotava em uns papéis os desfechos, com letras cursivas, prometendo, um dia, se tornar escritora.
Morava sozinha a Aparecida, depois da morte da mãe. Eu imaginava algum amor escondido, algum amante aparecedor da madrugada, cuja partida antecedia o acender do dia. Não sei por que imaginava isso, talvez tivesse conhecimento nenhum dos sentimentos e conhecesse apenas um jeito de amar, um jeito que eu ainda não havia amado. A minha alegria teve que ser adiada, também, em muito, mas essa é uma outra história. Hoje, a história é a de Aparecida, a florista conhecida de toda a cidade que inveja nenhuma tinha das histórias de amor que ajudava a desenhar.
Quando, enfim, saí e fui morar no grande mundo, deixei de viver aqueles pacatos dias de um interior tão poético. Comprei umas flores e falei o texto que queria para minha mãe. Ela sugeriu acréscimos. Eu acatei. E, quando os seus dedos iam desenhando a narrativa, um perfume grande acariciava a pequena distância que nos separava. Ela sorria com seus olhos e escrevia o ponto final orgulhosa de escrever amor.
Perguntou do meu paradeiro e eu respondi. Disse que sentiria saudades. Eu retribuí. E prometi que voltaria, quando desse, quando os estudos permitissem. Ela maneou a cabeça, mexeu nos cabelos encaracolados, cuidadosamente, para embelezar e disse palavras doces de futuro para mim. Na sua vitrola, uma música francesa no volume certo nos acompanhava. Foi a última vez que nos vimos.
Soube que, alguns meses depois, ela se mudou para viver um grande amor no exterior. Foi esse o texto da minha mãe. Eu quis saber mais. E mais ela não me disse. Minha mãe sempre foi muito cuidadosa em respeitar segredos.
É do que me lembro, então. E é uma lembrança feliz, de quem é feliz com a felicidade dos outros. Eu imaginei, na época, tantas histórias bonitas para essa mulher. Não sei qual a verdadeira. Só sei que quem planta, colhe e entrega amor não vive de infelicidades em nenhum lugar do mundo.