João Batista Damasceno: A Rainha morreu! Viva o Rei
A glamourização de reis e rainhas expressa o esquecimento de que essas instituições somente existem em razão do sofrimento, da vida e do sangue dos explorados
João Batista Damasceno, colunista do DIA - Divulgação
João Batista Damasceno, colunista do DIADivulgação
A frase clássica é “O Rei morreu! Viva o Rei!” Isto significa que no poder não há vácuo. A morte de um soberano implica a imediata ocupação do seu lugar por outro. A expressão “Rainha da Inglaterra” para designar o status dos que ostentam pompas mas não têm poder real tem sua existência vinculada à Rainha Elizabeth II, recentemente falecida. Quando os chefes militares entreguistas, vinculados aos interesses de empresas transnacionais estadunidenses, pretenderam impedir a posse do vice-presidente João Goulart em 1961, exigiram que fosse implantado no Brasil o sistema parlamentarista, subtraindo os poderes do presidente.
A primeira vez que tal expressão foi registrada é atribuída ao Jango, que teria indagado ao seu interlocutor se o que pretendiam era transformá-lo na “Rainha da Inglaterra”, recentemente entronizada no trono britânico. O golpe foi dado. Jango tomou posse com o regime parlamentarista, mas o povo lhe restituiu os poderes num plebiscito, ainda que em 1º de abril de 1964 um golpe empresarial-militar o tenha destituído do poder e o levado ao exílio onde morreu.
A história da monarquia inglesa nos permite compreender a abrupta mudança de poder das mãos dos nobres para as mãos da burguesia na Idade Moderna. Embora falemos do ideário da Revolução Francesa, como marco da ascensão da burguesia, as ocorrências no Reino Unido não podem ser desprezadas. A Revolução Francesa de 1789 é o final do processo de apropriação do Estado pelas burguesias emergentes, enquanto as ocorrências na Inglaterra, mas não só neste país, são o prenúncio da mudança real do poder das mãos de uma classe para outra.
Desde que o Rei Carlos I foi decapitado em 1649 a história das monarquias na Europa não mais foi a mesma. Daí que a execução do rei francês Luiz XVI, em 1793, foi apenas mais um desdobramento daquele processo de tomada do poder pela classe emergente. O Rei Carlos I, decapitado, se dizia ungido por Deus e antes da execução disse que o povo precisa é de um governo, não de participar do governo.
Em 1688 Jaime II, que também insistia em razões divinas para governar, foi deposto. A Revolução Gloriosa de 1688 levou ao poder o rei Guilherme III, Guilherme de Orange, que aprendera com o filósofo John Locke que o poder se exerce para atender aos interesses da sociedade, em suas expressões hegemônicas, e não para supostamente agradar aos deuses. Quem diz governar em nome de Deus na verdade esconde para quem realmente governa e despreza a fonte da legitimidade de todo o poder que é o povo.
A morte da Rainha Elizabeth II deve ser lamentada, como de qualquer pessoa. Mas ela mais que uma pessoa. Era herdeira de um legado de violências, atrocidades, exploração e racismo. A riqueza britânica, as pedras que incrustaram a coroa da rainha morta e os ornamentos da realeza só estão lá às custas da apropriação das riquezas alheias ao redor do mundo.
O enaltecimento indevido pela mídia da Coroa Britânica foi expressão da concepção colonialista que nos impregna, pois ignorou as atrocidades, crimes hediondos e crimes contra a humanidade cometidos contra os povos do Brasil, África e Ásia. Foram os ingleses os que instituíram o comércio de pessoas capturadas na África do século XVI ao século XIX. A escravidão no Brasil tinha a assinatura da realeza britânica. Os navios negreiros eram britânicos e os portos da costa oeste da ilha eram exportadores de gente escravizada. Blackpool, Liverpool e outras cidades da região floresceram com o comércio escravagista. Quando a escravidão já não lhes era mais lucrativa os ingleses a proibiram.
O colonialismo inglês e sua pirataria foi sobretudo segregacionista, além de racista e preconceituoso. É preciso lembrar da invasão da Baía de Guanabara na metade do século XIX, afrontando o Imperador D. Pedro II, no caso conhecido como Questão Christie. Na China, é preciso lembrar a Guerra do Ópio, também na metade do século XIX, quando a Inglaterra fez guerra àquele país para impor o comércio do ópio aos chineses, em nome do livre comércio.
Mesmo no século XX as atrocidades britânicas foram gigantes. A Revolta dos Mau-Mau na década de 1950 quando dezenas de milhares de quenianos sofreram torturas, linchamentos, execuções, castramento, estupros e roubo de seus bens, tão somente porque pretendiam a libertação do seu país da colonização e exploração britânica. A glamourização de reis e rainhas expressa o esquecimento de que essas instituições somente existem em razão do sofrimento, da vida e do sangue dos explorados.
João Batista Damasceno é doutor em Ciência Política (UFF), professor adjunto da UERJ e desembargador do TJ/RJ membro do colegiado de coordenação regional da Associação Juízes para a Democracia/AJD-RIO.
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