Voltei ao trabalho. Depois dos cortes, voltei ao trabalho.
Não houve sangue, houve machucaduras. Ela vestia um vestido que desclassificava qualquer outra. Nunca houve outra. Não sei o que ela soube. Não sei quais foram os ruídos que trouxeram silêncio aos meus dias. Um vestido estampado de cores alegres demitiu da minha alma a alegria.
“Fique com ela” foram suas palavras. Demorei a elaborar e, então, a rua estava vazia. Por que ela não permitiu uma conversa? Todas as vozes merecem ser ouvidas, mesmo as que parecem desagradáveis. Podem significar alguma afinação nos descompassos de barulhos causados por mentirosas vozes.
Desumanizado, voltei à padaria. Mesmo com todos os barulhos, não estava ela. Nas conversas que diziam nada ou nas correções do mundo em uma mesa de café e algumas fatias de pão. Ouvia e não ouvia. Ouvia e não via.
Dizem que o tempo embaralha novamente o jogo e outros dias nascem. Mas, como autorizar o dia, se a noite ainda não se explicou?
Foi nessa padaria que nos vimos pela primeira vez. Ela pediu que tirassem o miolo do pão. Depois, disse da manteiga. E pediu um café fraco. E sorriu como permissão para o alimento. Foram 7 anos. Nos amamos em ritmos diferentes, ouvindo músicas que nos acarinhavam. Ela parecia satisfeita. E eu? Eu despertava os dias dizendo o amor. O que houve, então? Ruídos dizem que ela usou a acusação para aliviar a culpa. Foi ela que se apaixonou por outro.
Uma senhora me diz o pedido, quer frios para levar para casa. Atendo. Resolvo. Revolvo os instantes da despedida, voltando os dias para alguma observação que não nasceu. Se um outro amor chegou, se o amor tão prometido eterno adormeceu, por que a acusação que era eu o experimentador de outros toques de ternura?
Um homem pede algumas garrafas. Sem alegria, pego e entrego. Agradece. Gesticulo, apenas, emprestando alguma gentileza. Os que fazem pão parecem compadecidos. Os que limpam, também. Olho um oratório que, desde o meu pai, vigia toda a padaria e suplico um alívio.Tenho impulso de voltar para casa e fechar as janelas. Resisto.
Dona Toninha, que há anos trabalha comigo, sussurra “Vai passar”. Perdeu ela o marido para outra. Enfrentou um câncer em um dos seios. Mora longe. E faz o percurso todos os dias oferecendo alegrias. Concordo. Ela prossegue “O senhor está vivo, sofrer de amor é isso, se saber vivo”.
O sol enfeita o lado de fora da padaria, onde mesas recebem histórias, onde histórias prosseguem sendo contadas. Não vou desligar o amanhã, mesmo que o hoje pareça insuportável. Vou comer essas palavras de esperança e prosseguir. Pedaços de retalhos também fazem cobertas que agasalham a alma.
Do forno que assa os pães, um cheiro bom me faz sentir. No rádio, uma música fala de amor. Sou parte da grande parte da humanidade que aguarda as cicatrizes na alma das feridas de amor. Enquanto não vem, preciso viver. Sei fazer pão. Sei do tempo da fermentação. Sei da primavera que interrompe o inverno. Sei de saber que, um dia, abrirei o dia, e ela não mais estará em mim. Sei de saber, ainda não sei de sentir.
Consigo sorrir de uma criança lambuzando de chocolate a mãe. Guimarães, que meu pai tanto citava, dizia que a felicidade vem é nesses momentos de distrações.