Rio - Eram 21h do dia 3 de abril, uma segunda-feira, quando X. precisou correr e entrar em um mercado para se proteger de um intenso tiroteio que ocorria na esquina entre as ruas Sacadura Cabral e do Livramento. Do lado de fora do estabelecimento, que precisou fechar as portas, traficantes e policiais se confrontaram com muitos tiros e bombas por pelo menos 30 minutos. Após sete anos da pacificação do Morro da Providência, na Zona Portuária do Rio, as cenas de violência se tornaram rotineiras na favela e nos bairros do entorno da comunidade, como Saúde, Santo Cristo e Gamboa.
Moradores relatam que, com a chegada da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na favela, o tráfico de drogas “desceu” e tomou casarões antigos desses locais. Com isso, eles contam que a violência aumentou nas ruas no entorno da Providência. “Por alguns meses depois da pacificação, quase não víamos ocorrências de tiroteios na região. Mas, logo depois, várias casas viraram bocas de fumo. O crack se instalou rapidamente aqui. Dá a impressão de que o bairro nunca será olhado de verdade”, lamenta X. A pacificação da Providência completa sete anos nesta quarta-feira.
Os frequentes confrontos na região fizeram com que algumas pessoas alterassem o trajeto até o trabalho. Diariamente, Y. saía da Praça da Harmonia, na Saúde, e andava pelas ruas Sacadura Cabral, Camerino e Alexandre Mackenzie, até chegar no metrô da estação Presidente Vargas. No entanto, desde o início de março, precisou alterar a rota por causa dos intensos tiroteios que ocorriam a qualquer hora do dia. “Vou pelo Boulevard Olímpico, de bicicleta ou de VLT [Veículo Leve Sobre Trilhos]. Com a mudança, preciso sair mais cedo de casa. Antes fazia o percurso em 45 minutos e agora levo mais de uma hora. Além disso, gasto mais dinheiro de passagem”, diz.
Já W. ficou preso no meio do tiroteio no momento em que levava sua filha para a escola. Ele lembra que a Via Binário, perto da Cidade do Samba, estava fechada e ele precisou fazer um caminho alternativo. “Eu não podia descer do carro com ela e nem prosseguir. Fui até a escola porque não tinha como voltar. Demorei quase uma hora para chegar até a Praça Mauá”, lembra.
Para os moradores da Providência, os momentos de terror são cada vez mais corriqueiros. Segundo A., de 27 anos, os confrontos ocorrem principalmente quando a polícia sobe o morro para fazer operações. No dia 23 de março, um PM foi ferido por estilhaços e um camelô foi atingido por uma bala perdida no Terminal Rodoviário Américo Fontenelle, a menos de 300 metros do túnel João Ricardo, que passa embaixo da comunidade. Naquele dia, o Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) estava na favela.
“Na Providência, não temos hospitais, mas temos 200 policiais efetivos. Para mim isso não muda nada, já que o Bope e o Choque continuam subindo. Não há tiroteio quando a polícia não entra. Qual avanço que a comunidade teve com a UPP? Pode ter permitido entrar alguns serviços, como TV a cabo e bancos, mas não houve avanço social”, enfatiza A.
As estatísticas assustam. De acordo com os dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), os seis primeiros meses de 2016 registraram o maior número de tentativas de homicídio na comunidade desde a pacificação: 77 ocorrências, sendo 31 em março. Já em 2010, quando a UPP foi implantada, apenas quatro casos foram contabilizados durante todo o ano.
Os indicadores de crimes violentos na região do 5º BPM (Praça da Harmonia), que reúne os bairros próximos à Providência, também aumentaram nos dois últimos anos em relação a 2011, quando a UPP ainda completaria um ano no morro. Em fevereiro de 2016, foram 24 casos de tentativa de homicídio na área, e no mesmo período de 2017, o ISP contabilizou 35 ocorrências. Enquanto isso, naquele mês de 2011 foram apenas dois crimes deste tipo.
Aumento de violência no Rio
Para o professor Ignácio Cano, houve uma queda da violência entre 2008 e 2012 no Rio, mas o esquema de segurança começou a se deteriorar de uma forma geral no estado em 2013. “A UPP segue a tendência geral. Hoje em dia, as áreas pacificadas estão pior que antes, mas ainda melhores do que outras partes do Rio”, completa o coordenador de Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Na época, havia a promessa da criação de projetos sociais e a expectativa de atrair turismo e comércio para a favela. "A base da UPP pode abrigar diversos projetos com ajuda da iniciativa privada. Terão total apoio da corporação", disse o então comandante Glauco Schorcht. No entanto, Cano analisa que na Providência há um desgaste na relação entre os policiais e moradores. “As UPPs deveriam ter criado uma política de proximidade, uma relação mais horizontal com os moradores, mas isso não aconteceu. A conduta dos policiais é fundamental para fortalecer essa ligação, mas em geral é de distância, de hostilidade”, explica.
Professor de História das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Oswaldo Munteal faz ainda um paralelo da atual situação com o passado da comunidade. Primeira favela do Rio, a Providência surgiu em 1897 para abrigar homens libertos da escravidão, vencedores da Guerra de Canudos e os marginais - pessoas que estavam à margem da sociedade.
“Retomar a história da Providência é também voltar à tradição, que é mais forte que a modernidade. Os morros acabam sendo a expressão viva de 400 anos de escravidão. A partir do governo de Getúlio Vargas, há uma relação maior com o asfalto, quando as pessoas passam de faveladas a trabalhadoras que moram na favela e não ficam mais à margem da cidade”, completa.
Entrada das drogas na Providência
O professor da Facha lembra que as drogas entraram no Morro da Providência no fim da década de 1970, ainda na ditadura militar. Com isso, ele destaca que a comunidade mudou de característica, já que os moradores se tornaram reféns das lideranças locais. “Quanto mais o crime se organiza, cria-se um código de sociabilidade no local e a população vira cada vez mais refém”, reforça.
O especialista alega que o entorno da comunidade também começa a fazer parte da lógica do tráfico de drogas. “Há um toque de recolher indireto, seja da polícia ou do traficante, e a população sofre de forma silenciosa. A Providência vive hoje um medo silencioso”, define.
Na análise de Munteal, a ideia inicial da UPP é “muito boa”, já que teria o objetivo de “trazer o bem estar social para as comunidades”. No entanto, ele diz que houve um erro no momento em que foi implantada. “Hoje deveríamos ter seis UPPs, mas já estamos com 37. O projeto foi feito de uma maneira muito apressada, na velocidade que a política exige. Houve um problema na formação dos policiais, eles não estavam muito adaptados ao novo território, que muitas vezes era hostil. Foi uma aceleração da guerra às drogas, naquela lógica de um confronto entre um ‘amigo’ e o ‘inimigo’”, enfatiza.
O professor afirma que o governo precisa adotar uma política voltada para os direitos humanos para tentar solucionar ou pelo menos reduzir o problema. “É fundamental que haja fiscalização na entrada de armas. É preciso tirar as pessoas da margem com uma política social e pública. Além disso, o policial precisa ser aparelhado com melhores condições de trabalho e salários em dia”, sugere.
Procurado pelo DIA, o comando da UPP Providência informou que trabalha, por meio do Setor de Inteligência, para identificar e prender os responsáveis pelos confrontos. A unidade destaca ainda que há o apoio do Comando de Operações Especiais (COE), que costuma fazer operações na região.
Em relação à parceria com o 5º BPM, a UPP explica que o batalhão ajuda no reforço no policiamento quando é necessário. “A Coordenadoria de Polícia Pacificadora (CPP) esclarece ainda que a unidade mantém bom relacionamento com a comunidade, o que pode ser reafirmado pelas inúmeras ações e projetos de prevenção desenvolvidos pelos policiais, que atendem a mais de 200 moradores”, completa.