Por cadu.bruno

Rio - Na casa de Tião, as crianças estudaram fotografia, cinema e serigrafia. Na de Cássia, aprenderam a tocar instrumentos e cantar. Na casa de Roberta, elas descobriram o que é carinho. E, em todas as casas, ainda tiveram reforço escolar. Agora, todas as casas ameaçam ruir.

Instituto Vida Real%2C da Maré%2C ajuda a amenizar os problemas sociaisDivulgação

Idealistas como Sebastião Antônio de Araújo, o Tião, fundador do Instituto Vida Real, na Maré; Roberta Azevedo, do Amparando Jardim Gramacho, Caxias, e Cássia Cássia Oliveira, do Harmonicanto, no Morro do Cantagalo, em Ipanema, tomaram para si o compromisso de fazer nas comunidades carentes o que o poder público deveria fazer e não fazia.

Ergueram com as próprias mãos centros, institutos e fundações em locais onde poucos se atreviam a ir. Entretanto, a falta de repasses públicos, a fuga de doadores, inclusive os internacionais, e o retorno da violência, tudo ao mesmo tempo, tem feito o Terceiro Setor sangrar.

“A situação está péssima”, diz um desanimado Tião, que atendeu a 3,2 mil crianças e adolescentes do Complexo da Maré e redondeza nos últimos 13 anos. Ensinou a ler, escrever, fazer conta, fotografar, desenhar. “Jovens que estavam no tráfico e não estão mais, e jovens que não entraram no mundo do crime por causa da gente”, se orgulha.
Sem receber o repasse de R$17 mil do estado há mais de um ano, teve que acabar com alguns cursos, dispensar funcionários e, pior, recusar novos alunos.

“No auge, atendíamos a 250 por dia. Atualmente, não chega a 90”, calcula um inconsolável Tião, que precisa de pelo menos R$22 mil por mês para manter o instituto aberto. “Hoje eu não tenho mais nenhum tostão”, diz.

Em situação semelhante se encontram centenas de Organizações Não-Governamentais (ONGs) localizadas em comunidades, que dependem de repasse do governo do estado. A Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia, Inovação e Desenvolvimento Social explica que os repasses não estão seguindo o cronograma estabelecido por cada convênio, por conta da grave crise econômica pela qual passa o estado.

Essa é a desculpa padrão. Mas é importante lembrar que todas essas ONGs aceitam ajuda de empresas e cidadãos, para que nas casas de Tião, Cássia e Roberta, as crianças continuem a cantar, ler, escrever e sonhar com um futuro melhor.

Associação sobrevive com bazares improvisados

Fincada no alto do Morro do Cantagalo, em Ipanema, a Associação Harmonicanto usa a música como instrumento de transformação. Para criar a ONG, em 2006, a professora Cássia Oliveira vendeu sua casa na Tijuca e comprou um imóvel no Cantagalo, que funcionou como sede até 2012. Agora, a sede é no ‘Brizolão’, o Centro Integrado de Educação Pública (CIEP) João Goulart, onde estão concentrados os projetos sociais da favela.

“O Harmonicanto tem muita dificuldade financeira. Desde setembro de 2015 a gente não consegue receber o salário, porque não tem doador. A gente sofre com isso. Mas é aquilo, não tenho o que quero, mas tenho o que preciso: as crianças, os instrumentos e a vontade de viver outra realidade”, desabafa Cássia, que continua dando aulas de canto, percussão, flauta doce e outros instrumentos para a garotada do morro.
A falta de dinheiro é apenas um dos problemas.

Cássia Oliveira e Rosana dão aula de comprometimento no CantagaloWilson Aquino / Agência O Dia

“Ano passado, pedimos voluntários para o reforço escolar. Foram mais de 100 inscritos, mas voltou o tiroteio e ninguém quer arriscar a vida para ajudar alguém”, lamenta a professora , que precisa de R$12 mil por mês para manter a instituição, mas só consegue arrecadar R$4 mil com doações e venda de produtos em bazares beneficentes. “É triste a mãe procurar vaga para criança de 4 anos e não ter como atender por falta de dinheiro”, lamenta.

Campanha Agosto Verde para estimular doações

Não são apenas as pequenas ONGs que agonizam. Tanto que foi lançada uma mobilização social, batizada de Agosto Verde, para impulsionar doações financeiras a grandes organizações de diferentes áreas, como LBV, Fundação Dorina Nowill, Abrinq, Fundação Gol de Letra, Fundação Cafu e Cruz Vermelha.

A campanha destaca que o hábito de fazer doações periódicas não faz parte da cultura do país, que ocupa apenas o 68º lugar no ranking 2015/2016 do WGI (World Giving Index), índice mundial da solidariedade. Segundo o estudo Doação Brasil, liderado pelo IDIS (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social), em 2015, as doações individuais dos brasileiros totalizaram R$ 13,7 bilhões e que essas doações ficam na faixa de R$ 20 a R$40 mensais, ou seja, de R$240 a R$480 por ano.

Outra tradicional ONG que enfrenta turbulência é o Solar Meninos de Luz, que funciona há 33 anos nas comunidades do Pavão-Pavãozinho e Cantagalo, em Copacabana.

A crise, que atinge todos os brasileiros, é apontada como a vilã, já que causou “a saída intempestiva de importantes investidores sociais no início do ano, que deixaram um déficit de R$ 100 mil por mês, dificultando o pagamento de seus mais de 100 funcionários, a maioria professores”, explica a instituição em comunicado.

Apesar da carência financeira, o Governo Federal garante que repassa generosa quantia para as 159 organizações do Rio que mantém convênio com a União. De acordo com informações do Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse, o valor desembolsado pela União de 2013 a 2017 foi de R$ 737.721.649,00.

Por outro lado, a dívida do Governo do Estado com as ONGs conveniadas beira os R$23 milhões, em valores de março, como revelou o ex-secretário de Estado de Assistência Social, Pedro Fernandes. Isso porque, em dezembro de 2016, por conta da impossibilidade de quitar os atrasos e manter o pagamento, os convênios de 109 instituições com a Fundação da Infância e do Adolescente (FIA) foram suspensos por tempo indeterminado.

Além disso, instituições que buscam apoio do Poder Público para continuar exercendo ou até mesmo ampliar suas atividades, não conseguem suporte. A assistente social Roberta Oliveira, fundadora da ONG Amparando Jardim Gramacho, até hoje não conseguiu assinar convênio.

“A gente vive de doações de pessoas físicas, faz bazar, eventos e campanhas”, explica Roberta, contando que precisa de pelo menos R$8 mil por mês para cuidar de 130 crianças, algumas com necessidades especiais, e adolescentes,além de 56 famílias que vivem em um dos locais mais miseráveis do Rio.

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