Pedro Strozenberg, da Defensoria Pública - Luciano Belford/Agência O Dia
Pedro Strozenberg, da Defensoria PúblicaLuciano Belford/Agência O Dia
Por FRANCISCO ALVES FILHO

Rio - Ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio, Pedro Strozenberg não vai esquecer tão cedo o dia do enterro coletivo dos mortos na operação policial na favela do Fallet, em Santa Teresa. "Você conhece o Cemitério São João Batista? Imagine: todas as capelas estavam ocupadas com corpos que eram do Fallet. Nos dois andares", conta. "E em duas delas, em cima, foram velados dois irmãos". Na ação, realizada no dia 8, morreram 15 homens acusados pela polícia de pertencer ao tráfico. Na versão oficial, eles resistiram à prisão e entraram em confronto. No testemunho de moradores e parentes, já tinham se entregado, e, mesmo assim, os PMs atiraram para matar. Alguns teriam sido assassinados a facadas.

No Rio, é quase uma rotina a atuação dos defensores em casos de ações policiais como essa, que resultam em mortes: foram 1.520 vítimas no ano passado. Mesmo em um cenário assim, a matança do Fallet aparece como ponto fora da curva. "É o maior número de mortes desde 2007, quando houve 19 vítimas no Alemão", destaca Daniel Lozoya, há 10 anos na Defensoria.

O trabalho de Lozoya e de seus colegas é garantir o direito dos parentes dos mortos, que não têm dinheiro para contratar advogados. Nessa época em que parte da sociedade prega que a justiça se transforme em vingança contra os criminosos, na base do "olho por olho", essa tarefa é cada vez mais difícil.

Para evitar manifestações mais radicais, alguns evitam manter perfis em redes sociais. O maior obstáculo, no entanto, não são os internautas, mas as autoridades. Integrantes da Defensoria lamentam declarações como a do governador Wilson Witzel, que disse em vídeo que a ação da polícia no Fallet foi "legítima". Para Lozoya, a equação é simples: se os policiais agiram corretamente, que o caso seja arquivado. Mas se houve execuções e tortura, como relatam as testemunhas, que o policial seja encaminhado à Justiça. "Quando a gente vê as autoridades legitimando a ação, isso coloca em xeque a investigação de instituições que estão subordinadas a essas pessoas", lamenta o defensor.

Lozoya avalia que essa distorção traz consequências graves. "O discurso de políticos e de parte da mídia é de que os Direitos Humanos são contrários à Segurança Pública. Isso penetra também no sistema de Justiça".

O ouvidor Pedro Strozenberg usa o passado recente do Rio de Janeiro para mostrar como esse pensamento é equivocado. "Vivemos intensamente essa realidade nos anos 1990. A lógica do confronto armado, a premiação faroeste, a ideia de que quanto mais mortos, maior o sucesso da operação. Isso não resultou em mais segurança para a população", diz.

Strozenberg lembra a velha máxima segundo a qual toda a ação tem uma reação: "Quando se fala que 'bandido bom é bandido morto', é um incentivo a que do outro lado o criminoso também diga que 'policial bom é policial morto'". O resultado, diz ele, é que há mais mortes de criminosos e também de policiais, sem que o cidadão comum fique mais seguro.

Interpretações erradas sobre o trabalho da Defensoria tornam ainda mais complicada uma empreitada que por natureza já não é simples. O órgão não consegue acompanhar o crescimento do Judiciário, que tem orçamento muito maior e amplia seu alcance rapidamente. A estimativa é de que o déficit de defensores no estado seja de 200 profissionais e a quantidade de servidores nos gabinetes deveria ser pelo menos duas vezes maior.

Apesar de tantas dificuldades, Daniel Lozoya não esmorece. "Nunca fiz concurso para juiz, nem para promotor. É uma tarefa muito dura ser defensor, porque estamos sempre do lado dos mais fracos. Mas é uma escolha de vida", confirma.

Relatos de mais de cinquenta moradores

Para reconstituir o que aconteceu nas áreas que foram alvo da ação do Bope e do Choque no Fallet, os defensores tiveram que checar informações variadas e chegaram a ouvir 50 pessoas. De um lado, a senhora que voltava para casa depois de comprar o pão, avisada pela colega que o sobrinho foi baleado. Ou a moradora que saía para levar a fi lha ao médico, informada sobre o irmão que estava numa casa cercada por policiais.

“Recriamos assim a dinâmica dos PMs entrando na favela e tentamos entender como a rotina do lugar foi mexida”, explica Strozenberg.

A cena mais aterradora se deu na casa número 91 da rua Eliseu Visconti, um dos acessos à favela, onde uma senhora idosa e uma criança foram mandadas para a rua, enquanto os soldados entravam. No local, sete jovens com idades entre 16 e 22 anos foram mortos. Houve mortes ainda em outros locais.

A mãe de dois deles contou que foi à padaria e, ao retornar, encontrou os fi lhos baleados e muito sangue em casa. “Eles estavam dormindo, e fui comprar pão. Quando voltei estavam sendo arrastados para o carro”, disse. “Fecharam a porta, executaram meus filhos, e enrolaram os corpos no meu próprio tapete”, relatou.

O DIA revelou que a primeira impressão dos peritos é que pelo menos 11 dos 15 mortos durante essa operação policial podem ter sido atingidos por disparos de curta distância, no peito e na cabeça.Os exames teriam indicado ‘orla de tatuagem’ nas vítimas, ou seja, resquícios de pólvora provenientes do cano da arma, o que indicaria que os tiros foram disparados de perto.

'Meu marido morreu por arma branca'

A esposa de Felipe Barbosa dos Santos, de 26 anos, que prefere não ser identificada, diz que ele era um dos sete rapazes mortos na casa no Fallet. Ela reconhece que o marido tinha envolvimento com o tráfico de drogas, era usuário, e conta que ele ficou quatro anos preso. "Eu estou desesperançosa que as investigações vão dar em alguma coisa, porque a polícia alega que foi troca de tiros, mas não teve nada disso. Todos os vizinhos ouviram eles pedindo 'socorro', eles se renderam, e os policiais atiraram na perna deles", relata ela. A mulher se mostra inconformada também com a causa da morte. "O laudo do óbito diz que ele morreu por arma branca, não tinha marca de tiro. Meu marido morreu na faca, quem matou ele?".

Ela conta que o corpo ficou dias desaparecido e foi encontrado no morro dos Prazeres, em outra comunidade. "É uma grande dor que eu tô sentindo de não ter enterrado ele direito. Nem tenho cabeça pra pensar." 

 

*Colaborou a estagiária Luana Dandara sob supervisão de Francisco Alves Filho

 

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