Jovens lésbicas fogem da intolerância familiar e aumentam estatística de desaparecidos
Desde 2015, 3.084 adolescentes desapareceram de casa. Entre as meninas, titular da DDPA aponta que a recusa dos pais em aceitar a sexualidade é o principal motivo
Rio - Aos 14 anos de idade, Pam Mariano foi avisada que um cartaz com o seu rosto estava colado em um poste de Copacabana, com uma única palavra: 'Desaparecida'. O telefone de contato era o de sua mãe, que um ano antes havia sentenciado que não queria uma filha homossexual em casa. Expulsa após uma surra, virou moradora de rua e encontrou na prostituição a única maneira de sobreviver.
Sua história não é exceção. A recusa de pais em aceitar a sexualidade dos filhos tem repercutido nas estatísticas de jovens desaparecidos. É o que indica levantamento da Delegacia de Descoberta de Paradeiros (DDPA) obtido por O DIA. Desde 2015, 3.084 adolescentes, entre 12 e 17 anos, desapareceram de casa no Município do Rio, sendo que 2.817 foram encontrados.
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"Entre as meninas dessa faixa etária que localizamos, a maioria disse que saiu de casa porque os pais não aceitavam a sua opção sexual, seja a bissexualidade ou o lesbianismo. Os adolescentes estão conscientes do que querem e, quando decidem fugir ou são expulsos, raramente querem voltar", afirmou a titular da especializada, delegada Ellen Souto.
Passados 20 anos, Pam faz terapia para sanar as marcas deixadas na alma. "Ainda criança, sentia atração por meninas. Me sentia suja ao ter que deitar com homens por dinheiro. Aos 30 anos, entrei em depressão profunda. Ao sair de casa, passei todos esses anos somente sobrevivendo. Não tinha como estudar. Sinto que minha adolescência foi toda perdida, simplesmente pelo preconceito, pois quando você não tem casa, perde a base principal para conseguir evoluir", afirmou.
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Para se reerguer, ela contou com a ajuda de grupos de apoio LGBT. Atualmente, trabalha como massoterapeuta, é percussionista e tem grupos musicais voltados para o público homossexual, como o Sapagode (trocadilho entre sapatão e pagode), que faz eventos de pagode somente para o público lésbico. É fã da percussionista Lan Lan, noiva da atriz Nanda Costa.
Pam conta que largou a prostituição ao conseguir seu primeiro emprego fixo, aos 18 anos. Desde então, já vendeu pastel, fez mudanças, foi auxiliar de secretaria e cuidou de gatos e plantas. "Há uma luz no fim do túnel. Ainda sofro, mas encontrei na música uma forma de me reerguer. Digo para todas que estão nessa situação: busquem apoio em redes do movimento, muitas anjinhas vão te ajudar". Seu contato com a mãe é esporádico. "Eu a perdoei. Vejo que ela somente reproduziu o que aprendeu. É um ciclo, que precisa ser quebrado. Por isso, mostro meu rosto. A gente não tem que se esconder, não temos que ter vergonha", disse.
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A Prefeitura do Rio ajuda, através da Coordenadoria Especial da Diversidade Sexual (CEDs), a todo o público gay que se encontra vulnerável. "Oferecemos abrigo, encaminhamento para emprego. Mas antes disso, buscamos apoio com amigos, outros familiares. Os abrigos não são hotéis", contou Nélio Georgini, coordenador da CEDs.
A assessora representante da Pauta L (Lésbicas) na CEDs, Caroline Caldas, não se surpreendeu com o resultado da estatística feito pela delegacia. "Elas não fogem de casa: o ambiente se torna tão hostil que é impossível viver naquele local. Muitas vezes sofrem, além da violência psicológica e física, a violência sexual, com estupros que os agressores chamam de corretivos", relatou.
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Com receio de expor a família, N.N, de 25 anos, conversou com a reportagem sem se identificar. Contou que foi expulsa de casa aos 21 anos, após revelar para a mãe, evangélica, que era lésbica. "Havia descoberto que minha namorada tinha me traído. Estava chorando e minha mãe perguntou o motivo. Contei e ela disse 'você está louca, você é da igreja'".
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Na mesma noite, seu padrasto ordenou que ela fizesse as malas e saísse de casa. "Ele me criava como filha desde os seis anos. Mas mostrou um cabo de vassoura, ameaçou me bater e disse que era para ir embora. Saí somente com uma mala, sem dinheiro algum", relembrou, lacrimejando.
Após ficar sem paradeiro certo por dois anos, recebeu a notícia de que uma tia havia sido assassinada e resolveu ir ao enterro. "Fiquei dois anos afastada de casa e, apesar de ter contato com minha minha mãe e irmão, tive que trancar a faculdade, tinha a vida desestruturada. Resolvi ir ao enterro para me despedir da minha tia. Meu padrasto, então, me abraçou. Choramos juntos. Acredito que isso fez com que ele percebesse que poderia me perder em definitivo. Ele me aceitou de volta em casa", contou. Atualmente, ela está casada com outra mulher em sua casa própria, retomou a faculdade e tem um emprego fixo.
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Para reatar os laços entre os familiares e os jovens, a delegacia criou uma parceria com a Cruz Vermelha. Um núcleo de psicologia e psiquiatria foi criado para tratar somente casos de desaparecidos. "São pais que querem melhorar a sua relação com os jovens, parentes de idosos com doenças mentais que fogem, além do tratamento do luto. Todos os pacientes para esse núcleo foram encaminhados pela delegacia", contou a delegada.
Perfil dos Desaparecidos: raptos, fuga com amantes e doenças estão entre os motivos
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Nos primeiros cinco meses deste ano, 815 casos de registros de desaparecidos, de todas as faixas etárias, foram feitos na DDPA. Desse total, 610 foram localizados; outros 21 estavam mortos.
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Já entre os adultos de 18 a 60 anos (5.191 casos), os desaparecimentos ocorreram para o uso de drogas ou por saída espontânea. "São comuns os casos em que mulheres ou homens desapareceram para ficar com amantes e depois voltaram dizendo que foram vítimas de algum crime. Entre os homens, há casos em que fogem para não pagar pensão alimentícia. E, há os casos em que os adultos não querem mais contato com outros familiares. Os encontramos, mas não podemos dizer o paradeiro, pois a pessoa tem esse direito de cortar os vínculos", explicou a delegada.
Entre os idosos, que somente este ano foram 96 casos, todos ocorreram por perda de memória ocasionada ou por depressão ou outros tipos de doenças, como Alzheimer. Para quem convive com idosos, a delegada frisa que uma solução simples pode ajudar na localização de um desaparecido: uma pulseira ou colar com o nome e número de identidade. "É importante não colocar o número de telefone. Aliás, isso serve para qualquer desaparecido, quando um familiar confecciona cartazes com números pessoais. Isso é um chamariz para trotes e até casos de extorsão. Somente com o número do RG, qualquer unidade de saúde ou da polícia vai conseguir localizar os familiares", afirmou.
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Núcleo trabalha 24 horas para localizar desaparecidos
Caso uma pessoa sem documentação ou contato de familiares seja internada em qualquer unidade de saúde do estado, há um plantão na DDPA para tentar localizar seus familiares. Chamado de Núcleo de Comunicação, a unidade funciona 24h em contato com a rede de saúde para identificar anônimos internados.
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"Isso ajuda de duas formas: a primeira é localizar o parente e evitar, assim, que ele faça o registro de ocorrência de desaparecido ou uma possível peregrinação desse familiar pelos hospitais. A outra, é ajudar a rede pública a liberar leitos hospitalares. Isso porque uma pessoa internada, que tenha perdido suas referências de lar, não pode receber alta mesmo sadia", explicou a delegada Ellen Souto.
O núcleo identificou, por exemplo, um homem que foi internado no Hospital Municipal Souza Aguiar, após um atropelamento no Centro, através de suas tatuagens. A mãe foi localizada e conseguiu se despedir. Uma semana após sua internação, ele faleceu.
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Também no Souza Aguiar, uma história de reencontro, mas com final feliz: uma idosa de 81 anos que havia perdido a memória e estava como moradora de rua foi internada. Ela lembrava somente do primeiro nome da irmã. Foi através de cruzamento de dados que a polícia conseguiu localizar a irmã, que a procurava desde 2014. Após ela receber alta, voltou ao convívio de seus familiares.