Dick Farney com Walt Disney - Reprodução
Dick Farney com Walt DisneyReprodução
Por Bernardo Costa

Boa parte da memória cultural do país resiste graças a iniciativas particulares. De acervos mantidos por conta própria por pessoas próximas a artistas, surgem novos projetos. São os casos de registros antigos do talento de Dick Farney e João Donato, que resiste ao tempo e ressurgirá em 2020 através do resgate de tesouros desconhecidos.

Em janeiro, a sobrinha do cantor e pianista Dick Farney, Mariângela Toledo, disponibilizará nas plataformas digitais três faixas inéditas. As gravações estavam em sete fitas de rolo doadas pelo arquiteto Cesar Lopes, que registrou, na década 70, as tardes que passava com Dick ao piano.

O material dará origem ao CD 'Dick Farney — Alguém como tu', que Mariângela e Cesar pretendem lançar no segundo semestre de 2020, quando terão início, com um ano de antecedência, as celebrações pelo centenário do artista que antecipou características da Bossa Nova ao cantar de forma intimista.

Mariângela com o artista plástico Paolo Quaglio, que montou mostra sobre Dick Farney em 2017 - Divulgação

"Levei um ano e meio em busca de uma empresa que conseguisse fazer o transporte de mídia da fita de rolo para CD sem que o material perdesse a qualidade. As gravações ficaram ótimas. Parece que foram feitas ontem", diz Mariângela, que guarda em casa, em São Paulo, milhares de materiais que contam a trajetória do tio, entre fotos, recortes de jornais, cartas, contratos e quadros pintados por Dick.

As gravações inéditas que começam a ser divulgadas no mês que vem, conta Mariângela, trazem o tio à vontade ao piano, interpretando canções que nunca gravou. Há faixas solos e outras acrescidas de baixo e bateria, gravados por Sabá e Toninho Pinheiro após a morte de Dick, em 1987. Ao todo, são 60 registros inéditos.

As fitas com os registros de Dick - Divulgação

Com base no acervo do tio, Mariângela escreveu a biografia de Dick Farney, livro com previsão de lançamento também no centenário do artista: "Quero fazer uma edição de alta qualidade. Vou contar histórias inéditas da relação dele com Carmem Miranda e Walt Disney, para quem trabalhou em dois filmes", diz.

Nos anos 50, quando morava no Rio, Dick promovia saraus em casa que reuniam gerações da música brasileira. Os encontros eram frequentados por Carmem Miranda, Francisco Alves e Orlando Silva, e também pelos adolescentes João Donato e Johnny Alf, que seguiram a trilha de renovação de estilo empregada por Dick em gravações como 'Copacabana' (1946), de João de Barro e Alberto Ribeiro, e 'Marina' (1947), de Dorival Caymmi.

João Donato trabalha nas partituras para sua suíte sinfônica popular - Divulgação

João Donato Sinfônico

O pianista e compositor João Donato, de 85 anos, também guarda em casa material que documenta sua carreira. Com base nele, prepara o projeto 'Suíte sinfônica popular sobre as obras de Debussy e Ravel'. A peça tem origem em gravações entregues a Donato pelo cantor Ritchie, em 2013.

"Este projeto hoje é o grande sonho dele, que vem lapidando esse material, passando para a pauta musical e escrevendo as partes para 90 instrumentos", diz Ivone Belém, produtora musical e mulher de João Donato.  

Ela está em busca de patrocínio para realizar a gravação de um DVD ao vivo no Theatro Municipal, em dois concertos. "Nossa expectativa é que tenhamos algo de concreto no próximo ano", diz Ivone.

O acervo de João Donato fica guardado em um quarto na casa onde mora com Ivone, na Urca. O arquivo foi catalogado com apoio de alunos de Museologia da Unirio. São fotos, 1.600 fitas-cassetes, cadernos de partituras e pedaços de papel com anotações musicais. 

Lula Freire mantém em casa acervo com gravações e entrevistas - Bernardo Costa

Compositor guarda memórias da bossa nova

A casa do compositor Lula Freire, hoje com 80 anos, foi um dos principais pontos de encontro no Rio dos músicos que deram origem à Bossa Nova. No fim dos anos 1950, quem fosse ao endereço de Freire, em Copacabana, poderia encontrar Tom Jobim, Baden Powell, Roberto Menescal, Ronaldo Bôscoli e Vinicius de Moraes, além de Dick Farney.

Nas reuniões, muito do que se tocou foi registrado em gravadores caseiros. O material permanece inédito no acervo de Lula Freire, que fez letras para músicas de Baden Powell, Roberto Menescal, Edu Lobo e Marcos Valle, entre outros. Um de seus maiores sucessos é 'Feitinha pro Poeta', com Baden: "Penso em doar o meu arquivo arquivo a uma instituição, para que não se perca. Talvez alguma universidade no exterior, pois, no Brasil, a memória não é levada muito a sério".
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