É inevitável: a lembrança do céu visto pelas grades e o odor forte do esgoto fazem as lágrimas rolarem no rosto de Danilo Félix de Oliveira, de 25 anos. Por 52 dias, essa foi a realidade do jovem ao ser preso apontado como um assaltante por uma vítima, que o reconheceu somente através de uma foto. Em sua audiência, em setembro, a mesma vítima não o reconheceu e ele foi absolvido.
Esse não é um caso isolado no Estado. Segundo relatório da Defensoria Pública do Rio, pelo menos 58 pessoas foram encarceradas por crimes que não cometeram, entre 1º de junho de 2019 e 10 de março de 2020, após falhas no reconhecimento fotográfico nas delegacias. A maioria de pele negra.
"Meu filho aprendeu a andar e eu estava na cadeia, e isso para mim era muito importante. Perdi o aniversário do meu pai, da minha esposa, Dia dos Pais. Perdi a dignidade", desabafou Danilo.
O reconhecimento por foto realizado através de duas fotos extraídas de seu facebook, postadas em 2017, quando Danilo estava com cabelo e barba diferentes da época do crime e da prisão. A Polícia Civil informou que fotos de redes sociais são consideradas fontes abertas e que usá-las é procedimento comum para identificar autores de crimes.
"O sofrimento da minha família era o que mais me doía. Meus pais são de família pobre e sempre lutaram para me dar tudo do bom, tudo que eles não tiveram. Nunca precisei roubar. Estava pagando por algo que não fiz e pensava na tristeza dos meus pais", disse.
Provar inocência
O violoncelista Luiz Carlos Justino, 23, passou cinco dias preso. Mas, diferente de Danilo, ainda tenta provar sua inocência. Ele foi reconhecido por uma vítima de roubo, em 2017, através de foto na delegacia.
Em 2 de setembro, Luiz voltava de apresentação da Orquestra de Cordas da Grota, quando foi abordado numa blitz e preso em cumprimento de mandado de prisão. Luiz afirma que no momento do crime do qual foi acusado, se apresentava numa padaria em Niterói. Três dias após a abordagem, ele teve a prisão convertida em domiciliar.
"Por que um jovem negro, violoncelista, que nunca teve passagem pela polícia, inspiraria 'desconfiança' ao constar de um álbum? Como essa foto foi parar no procedimento? Responder significa atender a reclamo geral chamado 'cadeia de custódia da prova", questionou o juiz em sua decisão.
O violoncelista carrega traumas dos dias da prisão. "Me marcou até hoje. Eu preciso me concentrar para ensaiar, por exemplo, e não consigo", desabafou.
Questionado sobre prisões baseadas somente em reconhecimento por fotos, o Ministério Público afirmou que: "É praxe nas delegacias fazer o reconhecimento por foto, uma vez que nem sempre o assaltante é preso em flagrante".
"Não houve reconhecimento pessoal porque as prisões preventivas foram expedidas após a conclusão do inquérito e, sendo assim, não são realizadas intimações, mas sim o cumprimento do mandado de prisão. O jovem foi reconhecido por seis vítimas, por delitos praticados em ruas adjacentes ao Morro do Estado, com o mesmo modus operandi. Ainda segundo a unidade, a repetição do modo em que o crime era cometido, dos locais de atuação e dos horários reforçaram os elementos de convicção nos inquéritos".
Ainda segundo a Polícia Civil, outro homem também apontado como autor dos roubos teve a prisão decretada e continua foragido.
O Ministério Público do Rio esclareceu que se manifestou pela manutenção da prisão preventiva de Danillo Félix porque ele foi reconhecido pela vítima no dia seguinte ao crime, através de fotografias existentes na delegacia e no Facebook. Ele ainda havia sido reconhecido por outras duas vítimas em procedimento instaurado perante à 4ª Vara Criminal de Niterói.
Ainda segundo o MP, Danilo foi denunciado junto com outra pessoa, e que os dois também foram reconhecidos por outras três vítimas em outros dois casos diferentes, ainda sem denúncia, também por roubos praticados com características semelhantes. "A promotoria reafirma que os argumentos defensivos não se sustentam quando diversas vítimas, que não se conhecem, reconhecem não somente Danillo, como também a outra pessoa, de modo que a autoria de um não exclui a do outro".
O Tribunal de Justiça não respondeu à reportagem sobre o caso de Danilo até esta publicação.
Sobre o caso do Luiz Carlos Justino, que ainda tenta provar sua inocência na justiça, a Polícia Civil declarou que Luiz Carlos foi identificado num inquérito de 2014, da 79ª DP (Jurujuba), que investigava o tráfico de drogas da comunidade da Grota e que, com base nisso, sua foto foi colocada no banco de fotos de suspeitos da área da distrital.
"Ele foi apontado e reconhecido nominalmente por traficantes daquela localidade como integrante da organização criminosa. Com base nessa identificação, além de cruzamento de dados de inteligência e monitoramento de perfis em redes sociais, foi criado um prontuário de pessoa física e a foto dele inserida no banco de imagens de suspeitos da unidade. Em 2017, ele foi reconhecido por uma vítima de roubo e teve o mandado de prisão expedido. O inquérito foi encaminhado para apreciação do Ministério Público e da Justiça, que deferiu a prisão".
Já o Ministério Público do Rio esclareceu que há uma ação penal já ajuizada, que deve seguir o regular procedimento previsto na lei, com designação de audiência para oitiva da vítima e/ou de testemunhas, manifestação pelas partes e posterior sentença.
Quanto à questão da possível falha na identificação do autor do citado crime, o MP afirma que ela será esclarecida quando a vítima for novamente ouvida. "Cabe ressaltar ainda que, caso sejam identificadas irregularidades na condução das investigações do fato à época, essas poderão ser objeto de apuração em procedimento próprio, uma vez que o Inquérito Policial não pode ser reaberto após o oferecimento da denúncia", afirmou em nota.
Procurado para esclarecer sobre a prisão preventiva de Luiz, o Tribunal de Justiça respondeu que os magistrados não comentam decisões.
Sobre o caso de Vando, que está preso desde 2018, a Polícia Civil não respondeu se a delegacia que investigava o crime da qual ele foi acusado chegou a tentar intimá-lo para prestar depoimento em sede policial, antes do inquérito ser encerrado e ofertado ao Ministério Público.
Já o MP informou que irá analisar o caso novamente após a conclusão de uma nova perícia que foi solicitada pela defesa de Vando, alegando necessidade de avaliar todo conjunto de provas. A promotoria também se posicionou sobre o pedido inicial de prisão à justiça.
"A testemunha confirmou o reconhecimento de Vando em sede policial e durante depoimento em Juízo, inclusive, presencialmente. Vale ressaltar que as investigações conduzidas pela Polícia contaram com o rastreamento de aparelho após a ativação de um chip no celular roubado em posse com a namorada do acusado. A partir daí, foi feita análise em rede social, tendo a testemunha reconhecido Wando como autor do roubo, inicialmente por foto. A Promotoria destaca, ainda, que a apreensão do aparelho roubado, aconteceu no ano passado, durante a tramitação do processo. Entregue pela namorada do acusado, o aparelho estava danificado, dificultando a perícia técnica, além de ter sido constatado que vários arquivos foram apagados", informou em nota.
O Tribunal de Justiça do Rio explicou que os inquéritos são feitos pela autoridade policial e as denúncias oferecidas pelo MP. "A culpabilidade do réu ou a sua inocência ficará comprovada ao longo do processo a que ele responde, com base nas provas apresentadas nos autos. O acusado tem amplo direito à defesa. A Justiça só expede mandados de prisão quando provocada".
Segundo o TJ, Vando teve cinco pedidos de habeas corpus negados.