Esposa Carla e filha Vitória carregam o pedido de 'Justiça por Marcelo'. Foto na comunidade Gardênia Azul - Luciano Belford/Agencia O Dia
Esposa Carla e filha Vitória carregam o pedido de 'Justiça por Marcelo'. Foto na comunidade Gardênia AzulLuciano Belford/Agencia O Dia
Por Yuri Eiras*
Rio - Arthur Miguel, de 5 anos, é a cara do pai. A única diferença está na cor da camisa: o filho rejeitou a herança vascaína e preferiu o Rubro-Negro. Na última segunda-feira (4), o marmorista Marcelo Guimarães, 38, deixou o pequeno na escolinha de futebol e foi para o trabalho com sua motocicleta. A distância entre a Gardênia Azul e a Cidade de Deus, duas favelas de Jacarepaguá, é de poucos quilômetros. Marcelo voltaria para casa para almoçar com a irmã, mas não chegou. No caminho, foi atingido no tórax esquerdo por uma bala. Do outro lado da pista, um blindado da Polícia Militar estava estacionado. Moradores da CDD tentaram acudi-lo, em vão. O disparo atravessou o peito. Morreu de tiro mais um trabalhador brasileiro.
Jorge Luiz Alves foi amigo de infância de Marcelo e estava feliz naquela segunda-feira: o parceiro da Gardênia Azul deixaria o filho pela primeira vez aos seus cuidados na escolinha Favelão FC, projeto esportivo da comunidade mantido por uma ONG italiana.
Publicidade
"Ele deu um beijo no filho, disse que 'papai tinha que trabalhar' e aconteceu essa tragédia", lembra o professor. "A avó do Arthur estava sentada ao lado do campo. Mandaram mensagem e ela saiu desesperada. Tive que suspender a aula e correr até o local para ajudar. Sinto tristeza. Um garoto de cinco anos vai crescer sem o pai. O que vai ser daqui para a frente?".
A esposa, Carla Guimarães, não sabe a resposta, mas busca forças para seguir cuidando de Arthur e de Vitória, 19, os dois filhos do casal. Carla pretende se mudar da casa em que viviam na Gardênia para outra, na mesma comunidade. A memória, no entanto, será eterna e dolorosa, como a do momento em que os policiais militares a colocaram sentada dentro do 'caveirão' para tentar acalmá-la.
Publicidade
Carla Guimarães, esposa de Marcelo, pretende se mudar. - Luciano Belford/Agência O Dia
Carla Guimarães, esposa de Marcelo, pretende se mudar.Luciano Belford/Agência O Dia
"Os policiais falaram que teve tiroteio. Eu disse: 'Mentira, eu moro a cinco minutos daqui e não ouvi. Vocês mataram meu marido'. Quando eu falei isso eles saíram de perto. Eu me tremia", relembrou Carla. Ela e toda a família estiveram frente a frente com o policial que teria atingido Marcelo, tanto no dia quanto depois, ao prestarem depoimento na delegacia. O blindado utilizado na ação passou por perícia, e as armas dos policias foram apreendidas. O caso está na Delegacia de Homicídios da Capital (DHC).
Publicidade
A versão da PM é de que "equipes do 18º BPM (Jacarepaguá), que reforçam o policiamento nas imediações da comunidade, foram atacadas por disparos de arma de fogo realizados por criminosos de dentro da Cidade de Deus. Os policiais reagiram à injusta agressão e cessaram o ataque. No momento da ação, um motociclista que passava pelo local foi atingido. Infelizmente, a vítima não resistiu aos ferimentos".
Carina Guimarães, irmã de Marcelo, sente indignação, mas diz também sentir uma ponta de culpa. Supervisora em uma concessionária de motocicletas, foi ela quem incentivou Marcelo a comprar uma idêntica a que tinha. "Ele comprou a moto em dezembro e só saiu com ela em fevereiro, depois de conseguir a carteira de habilitação. Fico me perguntando: se ele estivesse de bicicleta, será que faria isso?", questiona.
Publicidade
Gardênia e Cidade de Deus unidas na dor
Marcelo foi atingido justamente quando pilotava a motocicleta, em velocidade baixa, já que entraria em um dos acessos à comunidade. Testemunhas contam que ele derrapou com o tiro único no tronco. Dominados por facções diferentes - a Gardênia é território de milícia, e a Cidade de Deus é controlada pelo Comando Vermelho -, as comunidades se uniram na dor e na raiva. Moradores contestaram a versão da polícia de que havia tiroteio e afirmaram que o 'caveirão' já teria estacionado de frente para a favela nos dez dias anteriores. 
Publicidade
"Quando eu cheguei, o corpo já estava tampado. Os policiais pegaram o blindado e deram meia-volta, e o corpo ficou lá. Uma moça da Cidade de Deus ainda ficou dez, quinze minutos com ele se debatendo. Não tinha como salvar, o coração saiu, mas ela ligou para a ambulância e ficou com ele. E a população ficou ao redor para ninguém forjar nada, arma, droga, qualquer coisa do tipo", conta Carina, dona de voz e gestos firmes, apesar do visível desgaste do luto. Marcelo almoçaria com ela naquele que seria o primeiro dia de trabalho depois das festas de fim de ano. O trabalho na Marmoaria GT só retornou quatro dias depois do assassinato.
Rio de Janeiro 07/01/2021 - Especial Marcelo, trabalhador brasileiro. Na foto acima a Sara Thiengo e seus companheiros de trabalho. Foto: Luciano Belford/Agencia O Dia - Luciano Belford/Agencia O Dia
Rio de Janeiro 07/01/2021 - Especial Marcelo, trabalhador brasileiro. Na foto acima a Sara Thiengo e seus companheiros de trabalho. Foto: Luciano Belford/Agencia O DiaLuciano Belford/Agencia O Dia
A dor da mãe 
Publicidade
Na terça-feira, dia seguinte após a morte, moradores da CDD, Gardênia, amigos e familiares se juntaram em uma manifestação em memória de Marcelo. As mães dos cinco jovens assassinados por policiais na Chacina de Costa Barros, em 2015, estiveram no ato. Angélica Guimarães jamais imaginou que aquela dor vista apenas pelo telejornal seria vivida na pele. Pele preta, como boa parte das vítimas - relatório recente da Rede de Observatórios de Segurança apontou que a violência policial do Rio fez 1.423 vítimas negras e 231 brancas em 2019.
Publicidade
"O Marcelo foi meu primeiro filho (eram quatro, com ele). A gente nunca teve nada, tivemos que lutar para ter uma casinha para morar. Foi meu filho mais doloroso porque tive praticamente sozinha. Sofri, e meu filho sofreu muito junto comigo. Passamos fome. E meu filho nunca deu para bandido, vagabundo. Depois que conheceu a esposa trabalhou firme, assumiu a filha. E ele sempre foi estudioso, muito inteligente. A gente não entende, não aceita", lamenta.
Angélica Guimarães segura foto de Marcelo quando criança. Família fez a vida na Gardênia Azul, Jacarepaguá. - Luciano Belford/Agencia O Dia
Angélica Guimarães segura foto de Marcelo quando criança. Família fez a vida na Gardênia Azul, Jacarepaguá.Luciano Belford/Agencia O Dia
Publicidade
Na filha, a força do discurso e a esperança por um Brasil sem racismo
"Só fazia piada sem graça", relembra, com sorriso no rosto, a filha mais velha de Marcelo, Vitória Guimarães, 19. Atenta aos debates sobre racismo, a jovem, desde a morte do pai, tem usado as redes socias, para amplificar a voz da família. Mas infelizmente, também para refutar as fake news que associam Marcelo ao crime. Circulam em grupos de Whatsapp a foto de um outro homem de cavanhaque, que não é Marcelo, segurando um fuzil.
Publicidade
"Eu tenho um grupo de amigos que a gente sempre conversa sobre racismo. Domingo retrasado ficamos madrugada toda, depois da igreja, conversando sobre racismo, privilégio branco. Sempre tive esse pensamento. Tenho primos negros que moram em Campos dos Goytacazes e tenho medo de trazê-los pra cá para visitar a favela", disse.
Rio de Janeiro 07/01/2021 - Especial Marcelo, trabalhador brasileiro. Na foto acima a esposa Carla Guimarães e sua filha Vitória Guimarães. Foto: Luciano Belford/Agencia O Dia - Luciano Belford/Agencia O Dia
Rio de Janeiro 07/01/2021 - Especial Marcelo, trabalhador brasileiro. Na foto acima a esposa Carla Guimarães e sua filha Vitória Guimarães. Foto: Luciano Belford/Agencia O DiaLuciano Belford/Agencia O Dia
Publicidade
"Mas não me preocupo com o que estão dizendo sobre meu pai. Todo mundo sabe quem ele era de verdade, tanto que o ato foi cheio. A justiça está aí e vai ser feita. Um dia, vai". 
*Com fotos de Luciano Belford