Profissionais de saúde relatam o medo e os dramas no pior momento da pandemia
Na linha de frente no combate à doença, eles veem a situação se agravar dia a dia
Rio - O ambiente passa longe do glamour das séries médicas, como 'House' e 'The Good Doctor'. Não há tempo para diagnósticos geniais, tiradas engraçadas. O clima nos hospitais do Rio é de tensão constante e absoluta, desde quando a pandemia chegou ao país, há um ano, e revirou do avesso o já problemático sistema de saúde nacional. A luta pela vida dos pacientes que chegam, o luto pelos que não voltam, a enorme preocupação, a exaustão, o choro, as tardes sem almoço. E a esperança, por que não, pelos familiares vacinados. Trabalhadores da Saúde relatam ao jornal O DIA como têm sido as últimas semanas, marcadas por recordes diários de mortes no país e aumentos expressivos no número de internações nas cidades.
Com as redes hospitalares à beira do colapso, a tensão e as dificuldades dos profissionais são cada vez maiores. O Brasil chega ao pior momento, aproximando-se de 300 mil mortos. São quase 3 mil por dia — 125 vidas perdidas por hora, uma a cada 30 segundos. A semana também marcou o anúncio da quarta mudança no Ministério da Saúde em plena pandemia: sai o general Eduardo Pazuello, sob uma chuva de críticas pela condução no combate à covid-19 e a lentidão na compra de vacinas, entra o médico Marcelo Queiroga, presidente da Sociedade Brasileira de Cardiologia, que já admitiu: vai manter as diretrizes do presidente Jair Bolsonaro, em movimento logo apelidado nas redes sociais de a troca de seis por meia dúzia.
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O mais triste é que o Brasil se consolida como a Nação em que mais vidas são perdidas para a covid neste momento em todo o mundo. Só para reflexão: enquanto você lia esse texto, em média, mais três pessoas morreram no país.
YAGO FERNANDES, médico da Clínica da Família em Santa Cruz
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"Trabalho em uma clínica da família e durante a pandemia estive em um hospital particular. Vi esses dois mundos. Em março do ano passado, os atendimentos eram poucos. As pessoas estavam com medo de ir ao hospital. Conforme o tempo foi passando, as coisas foram abrindo e as pessoas perdendo o medo da doença... e aí o hospital começou a ficar muito cheio.
Quando eu tive covid, no fim de abril, início de maio, estava muito cheio. Fiquei afastado, foi no início da primeira onda. Para traçar esse paralelo, entre 2020 e 2021, as pessoas perderam o medo da doença, vivem como se não existisse pandemia. Já se acostumaram, talvez. Por mais que tenham as pessoas que não usem, a máscara entrou no nosso dia a dia. As pessoas estão morrendo. Se a gente for pensar num atentado, Torres Gêmeas, ou tragédias, como Brumadinho, a gente se choca. Mas, como as mortes da covid são diluídas por dia, parece que as pessoas não têm essa consciência. Ano passado, as pessoas estavam muito em casa. A gente tem que entender que, se a pessoa quer voltar a abraçar os pais, a viajar, a ir a churrascos, a festas, a única resposta é vacina".
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LÍBIA BELLUSCI, enfermeira
"No início da pandemia eu trabalhava em dois empregos, no Samu e na UPA da Penha. Sou enfermeira há 14 anos. Infelizmente, perdi o emprego do Samu, tive covid em abril de 2020 e, depois, mesmo após ser aprovada no novo processo seletivo, faço uso de medicação até hoje e minhas condições pulmonares não me permitem correr e trabalhar dentro de uma ambulância. A covid foi a pior experiência profissional da minha vida. Eu jamais pensei passar por tanta tristeza, tanto desespero para salvar vidas e manter a minha.
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Passei horas com paciente dentro da ambulância sem ter hospital para deixá-lo, tivemos que escolher quem colocaríamos primeiro no oxigênio. Tive muito medo de morrer e de deixar meu filho, perdemos mais de 60 trabalhadores da Enfermagem... Quando soubemos da eficácia das vacinas, tivemos alívio coletivo, mas infelizmente até hoje nossa população não teve acesso de forma geral. Após um ano de muito negacionismo do próprio presidente da República, o relaxamento foi visível e os casos crescem, as mortes só aumentam. Temos pacientes morrendo sem vaga na UTI".
GILANA RODRIGUES, enfermeira
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"Trabalho em Niterói. Estamos há exatamente um ano enfrentando essa pandemia, mais experientes e preparados. Agora a gente vê o cansaço e a exaustão no rosto dos profissionais de saúde, esperando que isso tudo passe e voltemos ao nosso atendimento normal. Mas, por trabalhar na emergência, cada dia vemos o setor muito lotado, pacientes chegando graves, com alta complexidade, saturação baixa, os CTIs lotados, vendo que está longe dessa pandemia acabar. Cada dia chegam mais e mais pacientes com covid, lotando CTIs e não tendo vagas. A maioria fica realmente lotando as emergências.
Lidar com os familiares preocupados e desesperados por notícias, nós da enfermagem estamos sempre tentando acalentar e acolher essas famílias, pois pode ser a última vez que vão ver o pai, a mãe... os profissionais lidam todo o tempo com o medo, que a gente vê estampado nos rostos de cada um. Mesmo depois da vacina, tem agora a probabilidade de reinfecção, mas, mesmo assim, o profissional escolheu essa profissão, ele está na linha de frente com garra até que isso tudo termine".
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GABRIEL FARIAS, gestor da UTI Pediátrica do Hospital e Clínica São Gonçalo
"A gente voltou a passar um momento difícil frente à pandemia. As unidades pediátricas já se preparam até para um possível colapso porque, com a chegada do outono, já começam a aparecer as doenças comuns nesta época, as respiratórias, que acometem muito as crianças. Agora, é uma realidade que a pandemia está aí, não acabou, apesar da chegada de vacinas. A ocupação nesta época do ano de serviços pediátricos já é mais alta por conta de outros tipos de vírus, as crises de asma... Então, somada à pandemia, a gente está se preparando para um possível aumento da taxa de ocupação e para lidar com o maior número de pacientes internados.
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Além disso, a internação pediátrica dá o direito a um acompanhante. Porém, como a covid tem um alto potencial de transmissibilidade, a visitação fica restrita. É um quadro muito ruim para o psicológico da criança e da família porque nessas internações são liberados somente o pai e a mãe, e elas têm outros convívios, com tios, irmãos, avós.... É uma internação muito delicada, fora a gravidade e a potencialidade que o quadro pode vir a apresentar".
FLÁVIA DO VALE, coordenadora da Maternidade do Hospital Icaraí, em Niterói
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"A gente lida com grávidas e tentantes (mulheres que buscam a gravidez). Está sendo muito difícil para elas. A gravidez é um momento mágico, de comemoração, de reunir a família, de chá de fraldas, de descobrir o sexo. Na maternidade, é sempre uma festa a chegada do bebê, os familiares todos vão. De repente, as grávidas se viram privadas de tudo isso. Sofreram com as incertezas da covid. Durante a pandemia, foi todo mundo relaxando, ganhando confiança, e a gente agora está sofrendo esse impacto.
Em quase um ano, praticamente não tivemos grávidas graves internadas. Nos últimos meses, foram pelo menos de quatro a cinco gestantes e pacientes pós-parto gravíssimas internadas no nosso hospital. Tivemos casos de grávidas, com gestação muito inicial, em que interromper é muito arriscado pro bebê, e a mãe muito grave... a gente se vê em situações muito extremas, tristes. No início, elas estavam temerosas e cuidadosas. Praticamente não vimos grávida pegando covid. Acho que ao longo da pandemia foram relaxando, aglomerando e isso está sendo bem impactante pra gente, que lida com situações muito complicadas".
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