"Pensei em como todos nós estamos ávidos por renascimento, depois de tempos tão difíceis que insistem em ficar" Arte de Kiko com fotos de Vinícius Dônola e Davi Lopes

Já fazia um tempo que o documentário 'Fênix: o voo de Davi', no Globoplay, estava na minha lista de desejos. Até que, num sábado à noite após um plantão do jornal, consegui conferir a obra. Davi Lopes escutou sons onde a maioria só sentia o silêncio perturbador da destruição. Entre tantas dores de quem via o Museu Nacional ser retorcido pelas cinzas no trágico incêndio de 2 de setembro de 2018, Davi era a salvação das chamas, como bombeiro, e da poesia, como luthier, o artesão de instrumentos musicais.
O belo documentário revela os ouvidos apurados do protagonista ao vislumbrar nas madeiras nobres dos destroços a parte de um violão, de um cavaquinho... Artistas têm mesmo esse dom: eles veem e ouvem além de todos os outros. Davi já nasceu com nome de quem cresce diante de desafios gigantes, movido pela coragem. E também pela fantasia que impulsiona os sonhadores. "Parece que é fácil renascer... Para a cinza virar pena dói. Mas é depois da dor que vem o grande esplendor do voo da fênix", resume de forma precisa o compositor Paulinho Moska.
Dentro do quarto, onde assistia ao documentário, o meu coração compreendeu muito bem o recado do músico. E a minha emoção também se encontrou diretamente com a de uma menina filmada na escadaria do museu. Sentada ao lado dos demais funcionários, ela não só acompanha, como sente Davi tocar e entoar 'Tudo novo de novo', de Moska. De olhos fechados, ela canta junto e, em seguida, passa as mãos no rosto enxugando as lágrimas. Pensei em como todos nós estamos ávidos por renascimento, depois de tempos tão difíceis que insistem em ficar. E me lembrei também de como a vida, em alguns momentos, nos pede que tudo seja "novo de novo" de forma insistente.
Para Davi, também não foi fácil. Como aliado, ele teve o dom de perceber o potencial de cada madeira para construir instrumentos que chegaram às mãos de Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Paulinho Moska, Hamilton de Holanda, Nilze Carvalho e Felipe Prazeres. No encontro com esses artistas, o renascimento é festejado de diferentes formas. E quando Davi diz a Gil que é uma honra receber um elogio dele, o mestre dá ao luthier o seu mérito: "É você. A vida é em você, a sua encarnação, a sua alma, o seu destino nesse mundo, para que você veio, por que você veio, para que você está aqui, o seu propósito". Gil, na sua enorme generosidade, reverencia assim a grandeza do voo de quem soube renascer.