Imediatamente, a minha mente voltou no vídeo da sala anterior, em que Clarice dizia ser uma escritora amadora. No sentido mais genuíno da palavra, de quem ama o que faz. E faz apenas por amorArte: Kiko
Equilíbrio mágico
Todas essas reflexões seguiram comigo para casa. E fiquei pensando, sem a audácia de encontrar uma resposta pronta, se é possível acharmos o equilíbrio entre o prazer e o prazo de um trabalho, entre gostar do que se faz e ter que fazê-lo
É incrível como algumas palavras entram no nosso caminho em momentos estratégicos da vida. Aconteceu comigo num dia desses, quando eu e as minhas amigas Claudia e Gisele conferimos a exposição 'Constelação Clarice', no Instituto Moreira Salles, na Gávea. Depois de olhar a primeira sala da mostra, eu rumei sozinha para o segundo ambiente. Chegando lá, notei que estava sendo transmitida a entrevista de Clarice Lispector a Júlio Lerner no programa 'Panorama', da TV Cultura, gravada em 1º de fevereiro de 1977 e exibida em 28 de dezembro do mesmo ano, após a morte da autora.
Fiz questão de parar alguns minutos ali, diante daquelas cenas tão marcantes. Clarice tem um rosto e um modo de falar expressivos e instigantes. Da mesma forma, algumas palavras dela me chamaram a atenção. Tanto que peguei o celular e anotei trechos da entrevista para o caso de eles escaparem da memória.
Na entrevista, quando o apresentador pergunta a Clarice a partir de qual momento ela efetivamente decidiu assumir a carreira de escritora, ela responde: "Eu nunca assumi". E explica: "Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional para manter minha liberdade".
Eu ainda tentava assimilar aquelas palavras, quando me dei conta de que a Claudia e a Gisele já estavam no mesmo ambiente, se emocionando com outras passagens da exposição. Juntas, rumamos para a sala seguinte, onde a Clarice pintora é exposta com direito a uma declaração dela na parede: "O que me 'desconstrói', por incrível que pareça, é pintar, e não ser pintora de forma alguma, e sem aprender nenhuma técnica. Pinto tão mal que dá gosto e não mostro os meus, entre aspas, 'quadros' a ninguém".
Ao meu lado, a Claudia logo comentou sobre a simbologia daquelas palavras e o compromisso que enfrentamos na vida de sermos profissionais no que fazemos. Imediatamente, a minha mente voltou no vídeo da sala anterior, em que Clarice dizia ser uma escritora amadora. No sentido mais genuíno da palavra, de quem ama o que faz. E faz apenas por amor.
Todas essas reflexões seguiram comigo para casa. E fiquei pensando, sem a audácia de encontrar uma resposta pronta, se é possível acharmos o equilíbrio entre o prazer e o prazo de um trabalho, entre gostar do que se faz e ter que fazê-lo. E constatei que folgas como a daquele dia me revigoram para seguir fazendo o que amo.
Mergulhei especialmente no significado de pintar "tão mal que dá gosto": seria o mesmo que tirar das costas o peso das expectativas, nossas e dos outros, sobre algo que fazemos. Mas, esperançosa que sou, prefiro acreditar que possa existir um equilíbrio mágico entre a inspiração e a transpiração nos nossos melhores dons.
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