Kathlen estava grávida de quatro meses quando foi mortaDivulgação

Rio - Uma bala perdida destruiu duas vidas de uma vez, a de Katlhen Romeu e seu bebê, ainda na barriga, e vem interrompendo tantas outras no decorrer dos anos. Kathlen foi morta em 2021 por um tiro de fuzil durante uma operação da Polícia Militar no Complexo do Lins, na Zona Norte, durante uma visita a sua avó.

A modelo de 24 anos é uma das 1.000 vítimas de balas perdidas nos últimos seis anos no estado do Rio, de acordo com um levantamento realizado pelo Instituto Fogo Cruzado divulgado nesta terça-feira (10). Para Jackeline Oliveira, mãe de Kathlen Romeu, o número de atingidos poderia ter sido evitado a partir de ações do Governo do Estado em prol da segurança pública.
"Sabemos que uma simples ação do Governo do Estado diminuiria consideravelmente estes números. Como? Implantando câmeras nos uniformes dos agentes de segurança. Isso nos respaldaria como moradores de periferia que constantemente sofremos covardias por agentes do Estado e respaldaria também o bom policial, que hoje é desacreditado por conta de irresponsáveis que usam a farda e comerem atrocidades. Tenho certeza que se estivessem fazendo uso das câmeras, eu estaria com minha filha e meu neto. Estudos comprovaram que em São Paulo a letalidade policial diminuíram consideravelmente, após uso das câmeras. Mas fica a pergunta: a quem interessa o não uso da ferramenta? Porque cidadãos do bem não teriam nada a temer", disse.

As vítimas são atingidas das mais diferentes formas, seja indo para o trabalho, para a escola, visitando familiares, procurando atendimento médico ou até mesmo caminhando pelas ruas. 

Casos como o de Kathlen Romeu, Ágatha Félix, Joseph Trey Thomas, Emily Victória e Rebecca Beatriz mostram que a violência no Rio não escolhe idade, hora ou local, mas vem se tornando frequente com o passar dos anos.

Entre 1.000 as vítimas dos disparos, 229 morreram e 771 ficaram feridas. Somente em 2022, 20 pessoas foram mortas e 62 feridas até a realização do levantamento.
Outra vítima é a pequena Ágatha Vitória Félix, de 8 anos, que morreu após ser atingida por uma bala perdida nas costas quando estava dentro de uma kombi, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio. De acordo com testemunhas, ela estava com a família, quando policiais militares da UPP Fazendinha atiraram contra uma moto na região, atingindo a menina. Para Vanessa Francisco Salles, mãe da criança, o alto número é consequência de falhas nas políticas públicas de segurança.
"Lamentável, e a cada ano só aumentam esses números, e a meu ver, está longe de acabar. Enquanto tivermos essas políticas públicas de governo, mais e mais pessoas morrerão dessa forma no Rio. Triste e doloroso é para os pais que ficam com o luto e todo o processo pela justiça que segue ao decorrer dos anos", desabafou.
Maria Isabel Couto, diretora de Dados e Transparência do Instituto Fogo Cruzado, destaca o elevado número de vítimas nas ações policiais.

"As ações e operações obedecem a uma lógica de conflito. As polícias não estão preparadas para evitar conflitos e isso se reflete no número elevado de vítimas de balas perdidas. Foram nove meses sem um plano de redução da letalidade policial desde que o STF determinou a elaboração de um projeto que visasse a redução de mortes pelos agentes do Estado. Esse é um passo importante para que a população do Rio de Janeiro deixe de viver à mercê de tiroteios que trazem traumas e afetam a rotina", avalia.

Dos 1.000 baleados, 624 foram atingidos na presença policial. 162 deles não resistiram e morreram. Desde 2016, o pior ano da série história foi em 2018, quando 252 pessoas foram vítimas de balas perdidas, sendo 47 mortas e 205 feridas. Neste ano, a Região Metropolitana do Rio passou por um período de Intervenção Federal, que durou 10 meses.
O Governo do Estado do Rio informou que, de acordo com o Instituto de Segurança Pública, os crimes contra a vida - incluindo morte por intervenção de agente do estado - apresentaram redução no acumulado de janeiro a novembro de 2022 em comparação ao mesmo período de 2021.

O homicídio doloso (intencional) apresentou a maior queda desde o início da série histórica, há 31 anos. Houve uma redução de 6,8%.

A letalidade violenta (roubo seguido de morte, homicídio doloso, morte por intervenção de agente do estado e lesão corporal seguida de morte) teve queda de 7,2%; a morte por intervenção de agente do estado reduziu 5,2%; o latrocínio diminuiu 42,3%.

Medo de bala perdida

Na cidade do Rio de Janeiro, ainda segundo relatório do Fogo Cruzando, 80% dos moradores dizem ter medo de serem vítimas de balas perdidas e 59% declararam que se mudariam da cidade caso fosse possível, revelou pesquisa do Datafolha divulgada em 2022.

Na região metropolitana, a violência está em todos os lugares e faz com que nem o próprio lar seja um lugar seguro. 108 pessoas foram vítimas de balas perdidas quando estavam dentro de casa (33 morreram e 75 ficaram feridas). Outras 25 pessoas foram atingidas quando se divertiam em bares (cinco mortos e 20 feridos). No relatório, o instituo ainda mostra que transitar pela região metropolitana também fez com que 18 pessoas fossem baleadas dentro de transportes públicos (uma morta e 17 feridas).

Os adultos, que transitam diariamente pelas cidades, são os mais afetados e representam 688 baleados entre as 1.000 vítimas. Dentre o número, 137 foram mortos e 551 ficaram feridos. Já entre a população idosa, com idade a partir de 60 anos, houve 119 das vítimas de balas perdidas e 77 morreram.

A violência desenfreada do Rio de Janeiro não atinge somente adultos e idosos, mas também crianças e adolescentes. Entre a população com idade inferior a 18 anos, 87 crianças e 92 adolescentes sofreram com as balas perdidas. Desse número, 21 crianças e 27 adolescentes não resistiram aos tiros e morreram. Houve ainda quem nem chegasse a conhecer o mundo: três bebês foram baleados quando ainda estavam na barriga da mãe e somente um sobreviveu. E 10 gestantes foram atingidas por balas perdidas: duas morreram e oito ficaram feridas.

O levantamento ainda destaca que nem mesmo estudantes e profissionais da educação dentro das unidades de ensino estavam livres de se tornarem vítimas das balas perdidas. Em pouco mais de seis anos, 16 pessoas foram vítimas: uma morreu e 15 ficaram feridas.

Maria Isabel Couto lembra ainda das consequências invisíveis dos tiroteios.

"Crianças e adolescentes em idade escolar têm o seu futuro prejudicado. As aulas são canceladas, provas são perdidas e professores e diretores precisam se preocupar com a própria segurança e a segurança de seus alunos. Incerteza, trauma e medo de serem as próximas vítimas da violência armada são efeitos diretos dos tiros que comprometem a aprendizagem. Os tiros deixam marcas, que vão além do está na pele e geram consequências que podem durar anos".

De acordo com o relatório, os trabalhadores informais também convivem diariamente com os riscos. Ao todo, nove motoboys/mototaxistas foram vítimas de balas perdidas (três morreram e seis ficaram feridos), oito motoristas de aplicativo foram baleados (metade morreu) e outros nove vendedores ambulantes também foram atingidos (um morreu e oito ficaram feridos).