nuno12dezARTE KIKO

Foi apenas uma imagem a mais, que logo se perderá entre as cenas registradas no calor desta guerra suja que vem sendo travada no Rio de Janeiro, entre as forças de segurança e os bandidos que há anos ampliam seu domínio sobre espaços cada vez maiores do território fluminense. Na madrugada de terça-feira passada, ao entrar na comunidade para remover barricadas instaladas por bandidos na região da Serrinha, na Zona Norte do Rio, a polícia encontrou uma casa ampla e bem construída para os padrões do local. O imóvel é equipado com piscina, churrasqueira, salão de jogos e um espaço onde alguns cães da raça pitbull eram mantidos confinados.
A piscina estava vazia e o lugar não apresentava sinais de uso recente. Também não havia bandidos dispostos a defender o local a bala. De qualquer forma, a casa parece estar de pé há alguns anos e não se sabe exatamente há quanto tempo o lugar vinha servindo aos criminosos da facção que domina o tráfico na região. Conforme a polícia, o imóvel pertence a um traficante chamado Wallace Brito Trindade e funcionaria como uma espécie de clube social da bandidagem — que o utilizava para realizar reuniões de “trabalho” e promover festas de arromba...
O enredo é repleto de detalhes inconvenientes. A operação, que terminou com a apreensão de uma pequena quantidade de drogas e de uma réplica de fuzil, teria sido motivada pela necessidade de inibir uma disputa entre os traficantes locais e seus rivais do Morro do Juramento. Conforme foi dito pelas autoridades e pelos moradores, as escaramuças na região são frequentes e mantêm as populações inocentes das comunidades o tempo todo expostas ao perigo.

OLHOS E OUVIDOS
O que mais incomoda diante de um fato como esse é a banalidade da notícia. Pelo tom da cobertura, ninguém pareceu achar estranho que bandidos construam casas que destoem do padrão das comunidades, como essa que foi erguida no meio de uma região carente e sem serviços públicos. Não foi a primeira nem será a última descoberta semelhante. Também não parece causar espanto saber que espaço era utilizado para confraternizações de criminosos que, pelos relatos, aconteciam diante dos olhos e dos ouvidos de quem estivesse por perto.
Ninguém achou esquisito, finalmente, saber que traficantes de uma determinada comunidade mantêm uma guerra declarada com criminosos do morro vizinho e usem os moradores inocentes dos dois lados como escudos humanos para suas manobras. Ninguém parece se indignar, também, ao saber que os criminosos de uma facção apenas esperaram que as forças de segurança virassem as costas para avançar sobre o território dominado pelo bando rival.
Foi isso que aconteceu na noite de quarta-feira, quando os bandidos do Juramento avançaram sobre Serrinha assim que os policiais foram embora. No cenário da guerra do Rio, fatos como esse são relatados como corriqueiros, como se fosse a cena mais natural do mundo ver bandidos à luz do dia trocarem tiros de fuzil com criminosos rivais.
Apenas a título de comparação, por mais desconfortável que ela seja, foi exatamente isso que aconteceu recentemente em Kabul. Ali, os terroristas do Estado Islâmico avançaram sobre os militantes do Talibã que tinham tomado o poder no Afeganistão assim que as tropas dos Estados Unidos deixaram o país. A diferença entre os dois cenários é que, lá, o mundo inteiro sabe que vive uma situação de guerra.

TRÊS GERAÇÕES
A primeira pergunta a ser feita é: o que mais é preciso esperar para que nos convençamos da necessidade de colocar o dedo na ferida e reconhecer que o Rio está em guerra? Na opinião desta coluna, a resposta é nada! Tudo o que precisamos fazer é deixar a hipocrisia de lado e passar a chamar o conflito pelo nome que merece: guerra! Dito isso, a segunda pergunta é: o que fazer para sair dessa situação?
A resposta a essa questão não é simples e qualquer um estaria mentindo se viesse com a promessa de resolver o problema da noite para o dia. O primeiro passo, conforme um especialista em segurança internacional ouvido pela coluna — com conhecimento profundo da situação de Israel e das áreas conflagradas do Oriente — é fazer um investimento pesado em educação nas áreas dominadas pelo crime. É necessário um trabalho específico e persistente (se necessário, sob proteção das Forças Armadas — por que não?) que ofereça às crianças expostas a esse conflito o conhecimento que lhes dê condições de competir num mercado de trabalho cada vez mais disputado.
Isso é imprescindível, porém, não basta. É preciso que a educação, além de conhecimento técnico, proporcione aos jovens os valores que vêm sendo negligenciados nos últimos anos. Para isso, seria interessante, também, que o Estado investisse no Serviço Militar para os jovens das comunidades e garantisse a eles não apenas noções de técnicas de combate, mas, principalmente, de cidadania.
Definida uma linha coerente de conteúdo, é preciso o compromisso de não abandoná-la ao primeiro sinal de dificuldade. Um trabalho como esse, por mais recomendável que seja, só dará resultados plenos dentro de pelo menos três gerações. Não é porque os efeitos positivos demorarão a aparecer em sua plenitude que o trabalho pode deixar de ser feito. Nada disso! Ele precisa ser iniciado já, em paralelo a uma nova abordagem de treinamento das forças de segurança — que também precisam de treinamento e de investimento.

AÇÃO PREVENTIVA
O ponto a ser atacado em seguida é a precariedade das condições de urbanização nas comunidades dominadas pelo tráfico. É necessário transformar os barracões modestos, localizados em vielas insalubres das comunidades, em residências dignas e seguras para as famílias. As comunidades precisam oferecer boas condições de higiene, ruas transitáveis, serviços regulares de coleta de lixo, água encanada, luz regular e uma série de serviços com os quais essas pessoas não contam hoje em dia.
Outro ponto a ser pensado é o da tecnologia e de seu uso a serviço da segurança da população — o que será facilitado pela introdução da tecnologia 5G no Brasil. O objetivo dessa providência, como certamente se ouvirá caso essa ideia seja levada adiante, não é invadir a privacidade das pessoas; mas, sim, monitorar movimentações suspeitas e atuar preventivamente ao menor sinal de perigo. Isso, aliás, é o que acontece nos bairros mais valorizados da Zona Sul da capital. Por que o mesmo serviço não pode ser instalado e mantido em operação nas comunidades mais expostas a essa guerra?
Esse, claro, é o cenário ideal e ninguém aqui está dizendo que será fácil implementar todas essas medidas que, é claro, custam dinheiro e exigem planejamento. Seja como for, o sucesso só virá a partir do momento em que o Estado reconquistar a confiança do cidadão e recuperar o tempo que perdeu depois de abandoná-lo à própria sorte.
Isso, é claro, não é fácil e só será possível a partir do momento que os políticos descobrirem que governar não é dizer sim a pedidos que, por falta de dinheiro ou mesmo de interesse, nunca serão atendidos. Na política é necessário saber dizer não. É preciso ter força para contrariar determinadas demandas que parecem atender os interesses das populações afetadas, mas que, se forem atendidas, servirão apenas para deixar a situação como está. Porque não podemos nos iludir: a situação só chegou ao ponto a que chegou porque, dentro e fora do Brasil, tem muita gente lucrando com ela.