Está aberta a temporada de greves em ano eleitoral
Greves de servidores públicos em ano de eleições não são novidade. É preciso saber até quando o Brasil conseguirá arcar com uma folha de salários cada vez mais pesada
Alguns fenômenos que se manifestam em anos de eleições presidenciais se tornaram tão previsíveis que deveriam constar do calendário do Tribunal Superior Eleitoral. Entre eles estão as greves de servidores públicos — que sempre se tornam mais intensas nos anos em que o voto do eleitor é disputado. O roteiro é conhecido. Certos de que a população será afetada pela interrupção dos serviços, os líderes sindicais do funcionalismo público aproveitam o momento para encostar o governo contra a contra a parede e exigir mais do que seria razoável. E o governo, para evitar que as chances eleitorais dos candidatos que apoia sejam prejudicadas pela repercussão negativa desses movimentos, acaba cedendo e concedendo vantagens que, no final das contas, pesam no bolso do contribuinte.
Qualquer generalização em torno desse tema é perigosa e pode conter injustiças. Os servidores públicos prestam serviços essenciais à população e devem, por princípio, ser bem remunerados e ter condições dignas de trabalho. O problema, porém, é que muita gente (principalmente das categorias profissionais mais destacadas) se vale das proteções que a lei oferece ao funcionário para tentar, nesses momentos, conseguir à força melhores condições de emprego para uma fatia da população que, em média, já desfruta de direitos e proteções que não se estendem às pessoas em geral.
PENEIRA DE MALHA FINA
Na semana passada, foi a vez dos médicos peritos se juntaram aos demais servidores do INSS e cruzarem os braços pedindo aumentos de 20% em seus salários. Não foram os únicos. O pessoal do Banco Central (um dos grupos de funcionários mais bem pagos do país) também decidiu pela paralisação para pressionar o governo a conceder um reajuste de 26% em seus holerites. Os Auditores do Tesouro Nacional também cruzaram os braços e há indícios de que, nos próximos dias, os agentes de segurança que contavam com aumentos superiores aos índices de inflação também iniciarão algum tipo de mobilização.
Ninguém quer discutir, aqui, se as remunerações dessas categorias são justas ou injustas. A intenção é apenas tentar entender um fenômeno intrigante em relação ao serviço público no país. Qualquer concurso aberto pelo governo federal, pelos governos estaduais e municipais atrai um número de candidatos muito superior às vagas oferecidas. Milhares e milhares de interessados sonham em conquistar uma delas para desfrutar da estabilidade, dos reajustes automáticos, do plano de saúde, da aposentadoria integral e da proteção que a lei dá ao servidor.
A malha da peneira que faz essa seleção é muito fina — e pouquíssimos conseguem passar por ela. Uma vez contratados, os aprovados se põem a reclamar das condições de trabalho. E começam a se queixar do salário que os atraiu quando leram o edital do concurso que prestaram. Nessa hora, e sem sofrer qualquer tipo de ameaça, aderem às greves convocadas pelas lideranças e passam a prejudicar a mesma população que deveriam servir.
No caso dos peritos do INSS, cujos salários variam entre quase R$ 8.000 e pouco mais de R$ 20.000 (dependendo no número de horas contratuais e do tempo de carreira), os serviços que deixam de prestar prejudicam uma parte especialmente vulnerável da população. São as pessoas que dependem de seus laudos para ter direito a algum benefício da previdência. Isso sem falar nos 2,8 milhões de processos de aposentadoria que aguardam análise dos técnicos da casa.
A paralisação dos trabalhos dos servidores do BC pode afetar o sistema de transferências instantâneas de dinheiro pelo PIX e a distribuição de cédulas às agências bancárias do pais — além de interromper o fluxo de informações essenciais para a tomada de decisões pelo Mercado Financeiro. Ou seja: cada categoria profissional presta um serviço que é essencial para a população. É inadmissível, porém, que a mesma necessidade que justifica a existência de um determinado emprego seja transformada num instrumento de pressão e de ameaça a toda população.
COTA DE SACRIFÍCIO
É lógico que essa discussão precisa ser posta em seu devido contexto — e, nesse ano específico, o contexto é o das condições lamentáveis da economia e das finanças do país. O país vive a crise mais prolongada de sua história e o estrago que a pandemia vem causando ao mercado nos últimos dois anos ainda está para ser avaliado pelos economistas.
Todos foram prejudicados e obrigados a dar uma cota de sacrifício num momento de extrema dificuldade. Milhares de companhias quebraram e milhões de trabalhadores foram para a rua e ficaram sem ter como por comida na mesa da família durante a pandemia. Os funcionários públicos, entretanto, não sofreram qualquer percalço.
Em meio ao vendaval da pandemia, saber que, no fim do mês, teriam o salário religiosamente depositado na conta bancária já deveria ser visto como um senhor privilégio. Os líderes sindicais de determinadas categorias, porém, parecem não estar nem aí para as dificuldades da população. Tudo o que puder ser feito para, a pretexto da ampliação dos direitos de seus liderados, beneficiar os candidatos de sua preferência e prejudicar aqueles de quem não gostam é visto como um recurso legítimo pelos que acham que os fins justificam os meios.
Não justificam e a população precisa ficar atenta a isso na hora de definir seu voto. O Brasil tem um conjunto de leis que algumas pessoas só respeitam quando é da sua conveniência. Foi o que se viu, por exemplo, durante a greve dos empregados nos transportes e, especialmente, dos consórcios do sistema BRT — que não são funcionários públicos, mas agem como se fossem.
A mesma lei que dá a esses profissionais o direito de greve determina que o serviço que eles prestam é essencial para a população e não pode ser totalmente interrompido. Os líderes do movimento, no entanto, só conhecem a parte da lei que lhes assegura o direito de greve e ignoram a que lhes cobra uma determinada contrapartida durante as paralisações. E assim, na terça-feira da semana passada interromperam completamente a prestação de um serviço de deveriam ter sido mantido em parte, para que a população pelo menos tivesse, ainda que sem as condições adequadas, como ir para o trabalho e voltar para casa.
Não é o caso de se discutir os salários dos motoristas do transporte público do Rio nem dos profissionais da limpeza urbana que, a rigor, são tão trabalhadores quanto os demais. Eles, sem dúvida, merecem ganhar mais do que recebem das empresas e órgãos que os contratam. O que se discute, mais uma vez, é o outro lado da moeda. É preciso pelo menos tentar saber como ficam os direitos da população prejudicada pela interrupção de serviços importantes como esses.
Não existe uma solução fácil para esse problema. Voltando a falar especificamente do funcionalismo, é preciso saber que, com ou sem as greves, o Tesouro Público não conseguirá por muito tempo cobrir as despesas com o funcionalismo que crescem sistematicamente mesmo quando não é concedido qualquer aumento. A lei brasileira prevê uma série de premiações e aumentos por tempo de serviço, que fazem com que a massa salarial aumente mesmo quando a arrecadação não cresce na mesma proporção.
É lógico que a correção desse tipo de distorção não será alcançada sem uma discussão profunda, em que cada um aceite abrir mão de um quinhão de seus direitos em troca de um benefício maior — que é a estabilidade do pais, a retomada do crescimento e a ampliação das oportunidades para todos. Seria, porém, uma quimera imaginar que os que sempre se beneficiaram com a situação atual aceitem espontaneamente abrir mão de seus anéis. Ainda que, para tentar mantê-los, corram o risco de perder os dedos mais adiante.
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