Nuno6marARTE KIKO

Situações de tensão internacional, como essa que surgiu com a invasão da Ucrânia pelas tropas da Rússia, oferecem um terreno fértil para análises apressadas, das quais às vezes brotam avaliações sombrias — que nem sempre se confirmam dois ou três meses depois de feitas. Ou que, na outra ponta, acabam subestimando os efeitos de gestos desastrosos que, num primeiro momento, parecem não ter importância. Muita gente passa a falar do conflito como se fosse especialista no tema e, mesmo sem ter domínio da situação, dá opiniões que, ao invés de ajudar a esclarecer, tornam o cenário ainda mais obscuro.
É isso, por exemplo, que vem acontecendo em relação às possíveis consequências para o Brasil da invasão da Ucrânia pela Rússia. No meio do debate, ganhou relevância na semana passada a discussão sobre a dependência do agronegócio brasileiro dos fertilizantes russos. De uma hora para outra, alguns analistas se deram conta da importância do cloreto de potássio, dos fosfatos e de outros produtos importados da Rússia para a lavoura nacional.
O assunto ganhou destaque quando o presidente Jair Bolsonaro mencionou a dependência que o agronegócio tem dos fertilizantes importados para justificar o silêncio de seu governo diante da invasão da Ucrânia. Bolsonaro disse que, para não ficar sem os fertilizantes, o Brasil deveria manter o equilíbrio diante do conflito. Seus críticos, porém, viram na declaração uma manifestação de apoio do presidente ao mandatário russo Vladimir Putin, a quem visitara dias antes do primeiro canhão abrir fogo contra o território ucraniano.
Bolsonaro está coberto de razão ao defender que o Brasil mantenha uma posição de equilíbrio neste ou em qualquer outro conflito internacional — mas a impressão que ficou do episódio foi mesmo a de que ele estaria se guiando mais por suas preferências ideológicas do que pelos interesses do país. O presidente errou, mas seus críticos também erraram. Ao insistir na condenação de qualquer declaração do presidente antes mesmo que ele a faça, eles deixaram passar uma oportunidade de ouro de trazer a diplomacia comercial brasileira para o centro do debate.

OS DOIS LADOS DA MOEDA — Uma diplomacia comercial eficiente é a chave para a solução de uma série de problemas — inclusive para a atração de investidores que podem contribuir para a dinamização da Economia brasileira e, naquilo que interessa a esta coluna, para o recuperação do Rio de Janeiro. Nenhum país do mundo tem condição de prosperar num ambiente econômico globalizado e interdependente como o do Século 21 se não souber defender e ampliar a posição que ocupa no tabuleiro das transações internacionais. E o que se percebe é que o Brasil ocupa uma posição acanhada, que não faz justiça à sua importância para a Economia mundial.
O Brasil é o maior exportador de alimentos do mundo e isso não é pouco. Essa condição se deve, sobretudo, à alta produtividade da lavoura da Região Centro-Oeste. As terras planas, a água abundante e o clima que possibilita duas ou mais colheitas no ano, oferecem as condições de manejo agrícola mais favoráveis do mundo. A única desvantagem do Brasil, nesse caso, é justamente a fertilidade das terras — que é baixa mas pode ser facilmente corrigida com a adição de fertilizantes.
A produção brasileira de fertilizantes é uma gota diante nas necessidades do agronegócio nacional. No ano passado, importou 85% de todo o fertilizante que utilizou. Isso significou um total de 41,6 milhões de toneladas. Desse total, 9,5 milhões de toneladas (praticamente um quarto do total importado) vieram da Rússia — que, antes mesmo da guerra já vinha demonstrando dificuldades para entregar fertilizantes na quantidade que o agronegócio brasileiro necessita.
Como qualquer moeda, essa tem dois lados. O Brasil exportou para a Rússia 768 mil toneladas de soja e 105 mil toneladas de frango, entre outros produtos agrícolas. É nesse ponto que a conversa fica interessante. O agronegócio brasileiro pode sofrer se o suprimento de fertilizantes russos for interrompido. Por outro lado, se esse sofrimento for grande, pode haver escassez de alimentos no mundo. Não existe no planeta outro país em condição de substituir o Brasil na compra de fertilizantes nem na oferta de alimentos. Se o Brasil não estiver bem no jogo, o mundo inteiro perde.

NANISMO DIPLOMÁTICO — A posição do Brasil no tabuleiro das transações internacionais é central, mas poucas vezes o país soube tirar proveito dela. E isso dificilmente acontecerá se não tiver um corpo de diplomatas preparado para defender seus interesses e se não contar com um governo aberto para o mundo, que ponha os interesses nacionais acima das preferências pessoais de seus governantes. No primeiro desses quesitos, o do corpo diplomático, o Brasil está bem — mas pode melhorar. No segundo, o da defesa dos interesses do país, tem deixado a desejar e sofrido um crescente nanismo diplomático. Justiça seja feita, isso não começou no governo Bolsonaro.
A expressão “anão diplomático” foi utilizada pela primeira vez em relação ao Brasil nos governos petistas — diante da insistência do país em tomar posições mais preocupadas em agradar seus aliados regionais do que em resguardar seus interesses. Foi o que aconteceu, por exemplo, na falta de reação brasileira diante da decisão do governo da Bolívia de nacionalizar os ativos da Petrobras no país em maio de 2006. O presidente boliviano na época, Evo Morales, eleito na onda esquerdista que varreu a América Latina na primeira década do Século, era aliado do PT.
O único sentido em trazer essa história de volta é mostrar que, seja o governo mais inclinado para a esquerda, como era o de Lula, ou mais simpático à direita, como é o de Bolsonaro, o Brasil sairá ganhando se os governantes passarem a tomar decisões que levem em conta os interesses do país — e não suas afinidades de qualquer natureza. Há precedentes importantes nesse sentido.

PRAGMATISMO RESPONSÁVEL — O Brasil foi o primeiro país do mundo a reconhecer a independência de Angola, em 1975 — mesmo tendo, na época, um governo militar totalmente contrário ao MPLA, o partido de orientação comunista que assumiu o poder na ex-colônia portuguesa. Conhecida como “Pragmatismo Responsável”, a orientação do Itamaraty na época estava voltada para a abertura de novos mercados no Oriente Médio e na Ásia sem, no entanto, abrir mão dos negócios que fazia com os tradicionais parceiros do Ocidente.
A linha de atuação foi mantida nos primeiros governos do período democrático, mas começou a perder o fôlego a partir da primeira administração de Lula — quando o alinhamento automático a Cuba e à Venezuela (que, na época, vivia uma situação ilusória de pujança) passou a orientar os movimentos da diplomacia brasileira. Nada contra a relação com esses ou qualquer outro país. O certo, porém, é que não se deve, como aconteceu nos Lula e Dilma e vem acontecendo agora com Bolsonaro, tratar como seus inimigos os inimigos de seus amigos.
O Brasil precisa deixar de tomar atitudes açodadas sob a inspiração da ideologia de seu governo e das preferências de seus governantes. Mencionar a questão dos fertilizantes no calor do conflito, como fez Bolsonaro, foi inoportuno. O Brasil, felizmente, não insistiu em sua adesão à causa russa e deixou isso claro com o voto que deu na Assembleia Geral das Nações Unidas, que, na quarta-feira, deplorou as ações de Moscou e exigiu o cessar-fogo imediato.
Foi dele um dos 141 votos que aprovaram a declaração que censurou a Rússia por suas hostilidades. Houve 35 abstenções e cinco votos contrários à resolução e, portanto, favoráveis a Moscou. A conta dos 193 países membros é fechada pelos 12 que não votaram. O papel do governo e da diplomacia é fazer com que o Brasil ocupe um lugar cada vez mais destacado entre eles — e não o contrário, como vem acontecendo.


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