Arte coluna Nuno20 fevereiroArte Paulo Márcio

O que menos interessa em relação à tragédia da semana passada é saber que as chuvas que desabaram sobre Petrópolis a partir das 15 horas da terça-feira foram consequência de um fenômeno natural atípico e inesperado. Nesse caso específico, a causa primária da tromba d’água foi a passagem pela costa do Rio de Janeiro de uma frente fria que, em contato com o calor do verão, acumulado sobre a região Serrana, formou áreas de instabilidade e causou o desastre. O fenômeno, é óbvio, não poderia ter sido evitado pelo aumento da fiscalização nem estava a cargo de qualquer autoridade — fatos, que, entretanto, não livram o poder público da responsabilidade pelas vidas perdidas.
Não importa se, no final, chegarmos à conclusão de que 200 pessoas ou mais (como parece ser o caso, já que as buscas prosseguem sem que se encontrem sobreviventes) perderam o direito de sonhar com vidas e futuros melhores e mais felizes e, de uma hora para outra, se reduziram a números da estatística macabra que engrossa a cada verão. Também não é o caso de darmos um sonoro basta a algo que sabemos que não acabará no verão que vem. Tudo o que nos resta é nossa solidariedade, nossa indignação e a certeza de que tudo pode acontecer novamente.
A tragédia, desta vez, ocorreu em Petrópolis — como poderia ter se abatido sobre Nova Friburgo, Teresópolis ou a própria capital. A culpa não pode ser cobrada da natureza. Nem das famílias atingidas. O fato de ocuparem áreas consideradas de risco ou de transitarem por ruas que viraram cachoeiras em questão de minutos, não ameniza — mas, ao contrário, aumenta — a responsabilidade do Estado sobre a segurança e as vidas das cidadãs e os cidadãos que vivem em nas regiões sujeitas a esse tipo de perigo.
Não importa que o deslizamento leva por água abaixo residências erguidas no Morro da Oficina, em Petrópolis, ou no Morro do Feijão, em São Gonçalo. O que interessa é que, enquanto houver uma única moradia construída em lugar que ameace a segurança, nem as autoridades, nem a sociedade e nem mesmo a própria imprensa podem alegar surpresa diante da tragédia.

OS TRÊS VÍCIOS DA ADMINISTRAÇÃO
No ponto a que a situação chegou, todos nós sabemos que qualquer promessa de resolver esse problema de um ano para outro seria uma demonstração de oportunismo, de irresponsabilidade, de má fé ou da soma de tudo isso. Da mesma forma, as autoridades de hoje não podem carregar sozinhas a culpa pela ocupação sem critérios das áreas de risco e por outras irregularidades que se acumulam há décadas — para não dizer há mais de um século. O fato, porém, é que o fato de um problema ser antigo não o torna insolúvel. Desde que, naturalmente, seja tratado como prioridade. O problema é que, a cada vez que se tenta discutir essa questão, logo surgem três vícios que, assim como a questão da moradia popular, são problema crônicos da administração pública brasileira.
O primeiro é a falta de planejamento. Ninguém pode falar em retirar pessoas das áreas de risco nem em dar segurança a quem vive em construções ameaçadas se não souber, passo por passo, que tipo de solução deve ser aplicada em cada caso. Também é preciso saber quais são os recursos necessários para alcançar o objetivo perseguido — sempre levando em conta que as famílias em risco (que precisam ser ouvidas com muita atenção) não estão ali por amor ao perigo, mas porque não encontraram áreas mais seguras onde pudesse se instalar.
Além de planejamento, é preciso que haja garantias institucionais de continuidade. É simplesmente impossível supor que alguma solução eficaz e, na medida do possível, definitiva para um problema da dimensão que alcançou o da moradia popular no Rio será alcançada ao longo dos quatro anos de um mandato. A solução para a questão habitacional precisa ser tratada como uma corrida de revezamento, em que um atleta passa o bastão para outro, que passa para um terceiro e assim por diante... até que a linha de chegada seja finalmente ultrapassada.
O terceiro e último fator talvez seja o mais importante de todos: dinheiro. Um programa com essa ambição exigirá somas exorbitantes, mas não poderá ser interrompido por falta de cobertura orçamentária. Também será preciso zelo para que o dinheiro não seja desviado nem surrupiado. Mas, atenção! Independente do eventual mau uso, a falta de planejamento e a inexistência de garantias de continuidade acabam significando falta de dinheiro. Que, por sua vez, é a justificativa para que nada se faça; e enquanto nada se faz, vidas são perdidas por razões perfeitamente evitáveis.

PLANO DE SALVAÇÃO
Por onde começar a resolver o problema? Bem, neste ponto, nada melhor do que voltar à sugestão apresentada na semana passada: o Rio precisa de um plano de salvação assumido por 100% das pessoas que vierem a ser eleitas para o Legislativo e para o Executivo nas eleições de 2 de outubro deste ano. Todos eles, além das lideranças empresariais, comunitárias e da sociedade civil, sem exceção, precisam entender que a salvação do Rio (e isso começa pela proteção às vidas de todas as cidadãs e todos os cidadãos do estado) deve ocupar a primeiríssima posição na lista de prioridades — independente da ideologia, do partido ou dos interesses regionais de cada político.
É preciso, da mesma forma, passar a encarar os orçamentos de cada município, do estado e até mesmo da União com outros olhos e, o mais depressa possível, alterar os critérios que define, os gastos públicos. Só assim seria possível liberar recursos para serem investidos em obras que interessam.
Da forma como é feito no Brasil, todos consideram normal que algo em torno de 90% de todo o dinheiro público seja gasto com o pessoal e com outras despesas obrigatórias. O que resta nos cofres públicos não dá para cobrir todas as necessidades de um estado e de um país que precisam ser reconstruídos tijolo por tijolo.
Num cenário como esse, ainda que por milagre a economia voltasse a crescer num passe e que os impostos recolhidos pelas pessoas e pelas empresas voltassem a encher os cofres federais, estaduais e municipais, a falta de dinheiro para medidas essenciais como o da moradia popular em áreas de risco persistiria. Da forma amarrada como os orçamentos públicos são elaborados por aqui, os aumentos de arrecadação nada mais geram do que aumentos instantâneos de salários para as categorias mais privilegiadas do serviço público. Apenas uma fração mínima seria destinada aos chamados “gastos discricionários” — ou seja, aqueles que poderiam ser gasto a um programa destinado a salvar vidas.

TRAGÉDIAS EVITÁVEIS
Outro ponto que precisa ser analisado com cuidado é o do impacto da atual política tributária sobre a saúde e a sobrevivência das empresas. Isso mesmo: ao contrário do que pensam certos políticos, é preciso entender que não se constrói uma sociedade saudável sem empresas saudáveis — capazes de oferecer bons empregos e de contribuir com impostos destinados ao bem estar das pessoas. Sim. Não é dificultando, mas facilitando a vida das organizações que o Estado conseguirá mais dinheiro para investir no bem estar das pessoas.
Insisto: os impostos pagos pelas empresas e pelas pessoas físicas, além de alimentar a máquina pública, deveriam ser suficientes para bancar os investimentos públicos que tornam o ambiente social mais saudável. Esse seria, numa visão mais do que simplificada, o chamado círculo virtuoso. Da forma como gira no Brasil atualmente, o círculo é vicioso e pode emperrar a qualquer momento na medida em que as empresas continuarem a pagar mais impostos do que são capazes de suportar...
Hoje, no Brasil, um número decrescente de empresas formais paga os impostos que sustentam uma máquina pública balofa, lenta e onerosa. A essa altura, alguém deve estar se perguntando: o que a realidade fiscal do país tem a ver com a tragédia que aconteceu em Petrópolis? A resposta é: tudo. O Rio e o Brasil precisam se convencer de que o Estado não pode consumir em sua própria manutenção mais do que gasta com os investimentos que geram o bem estar da sociedade.
Enquanto isso não acontecer, mais, mais e mais tragédias como a de Petrópolis acontecerão. É preciso com urgência perseguir o círculo virtuoso. Do contrário, continuaremos a nos iludir com a ideia de que, por mais necessárias que sejam, as sirenes acionadas nos momentos de perigo são o único instrumento de que dispomos para proteger os que vivem em regiões sujeitas a esse tipo de ameaça.