Nuno17abrARTE KIKO

O cidadão, principalmente aquele que depende dos trens para exercer seu direito de ir e vir entre a casa e o trabalho, não quer saber quem tem razão na briga que vem sendo travada entre o governo estadual e a Supervia — empresa que desde 1998 administra o sistema ferroviário que serve (ou deveria servir) à Região Metropolitana do Rio de Janeiro. Tudo o que ele deseja é um sistema pontual, seguro e, na medida do possível, confortável. Ou, se isso não for possível, um sistema que pelo menos funcione.
Ele deseja e tem direito a um sistema eficiente, servido por trens limpos, com estações em que possa embarcar e desembarcar onde for mais conveniente. Ele deseja um sistema que nem precisa ser moderno, eficiente e confiável como os das capitais mais avançadas do mundo, como Londres, Paris e Tóquio — mas que pelo menos se compare aos de outras metrópoles da América Latina, como Buenos Aires, Santiago e São Paulo.
A realidade, porém, é que a Supervia, a despeito das melhorias que foram feitas desde que o sistema deixou de ser explorado diretamente pelo governo e de todas as mudanças que já houve em seu controle acionário, nunca entregou tudo o que se comprometeu a entregar desde que assumiu a concessão. E a população, que há anos vem ouvindo promessas de que tudo será resolvido, continua tendo uma sensação parecida com aquela que foi descrita no samba 'O Trem Atrasou', sucesso do Carnaval de 1941.
Cantado por Roberto Paiva, o samba de 81 anos atrás descreve o drama de um empregado que tenta explicar ao patrão por que chegou atrasado ao serviço e, para não ser mandado embora, dizia que “o trem atrasou meia hora”. Por mais que o mundo tenha evoluído de lá para cá, a realidade atual não é muito diferente da que se vivia naquele tempo.
Dias atrás, as pessoas que pretendiam pegar o trem na hora de ir trabalhar encontraram fechadas as portas de 54 das 104 estações da companhia. Dois ramais inteiros — o de Belford Roxo e o de Saracuruna — ficaram totalmente inoperantes e a circulação levou mais de seis horas para voltar ao normal. Foi um Deus nos acuda! De acordo com a companhia (e ninguém pode negar que ela tem uma boa dose de razão com esse argumento) a falha se deu porque centenas de metros dos cabos de cobre que abastecem o sistema com eletricidade foram furtados e que isso impediu a operação dos trens.

FURTO DO COBRE — O problema é, de fato, recorrente — e vem se estendendo por anos, sem que os órgãos de segurança pública consigam solucioná-lo. Em janeiro e fevereiro deste ano, mais de dez quilômetros de fios foram furtados, causando prejuízos vultosos e prejudicando cerca de 500 viagens. A concessionária registrou nesses dois meses mais de 220 ocorrências — um número quase três vezes superior ao registrado no mesmo período do ano passado.
O furto dos cabos (que deveria ser combatido com mais seriedade) esclarece uma parte — talvez a mais aguda — do problema. Mas não é suficiente para explicar o desconforto imposto ao passageiro pela superlotação dos vagões. A culpa, nesse caso, é exclusivamente da empresa que, sabe-se lá por que razão, nunca põe para circular a quantidade de trens necessária nos horários de pico. O furto de cabos também não explica o estado de conservação deplorável de algumas estações.
Em resposta à paralisação das 54 estações, o governador Cláudio de Castro mandou suspender as negociações que vinha mantendo com a Supervia. A empresa queria que o preço da passagem passasse de R$ 5 para R$ 7. Em tempo: em São Paulo, que conta com um sistema que, por mais distante da perfeição que esteja, é muito mais eficiente do que o do Rio, a passagem custa R$ 4,40.
Alguém pode dizer que isso só é possível porque a empresa que administra os trens que circulam pela Grande São Paulo é estatal (a Companhia Paulista de Trens Metropolitanos, CPTM) e que o governo paulista a abastece com subsídios milionários. Isso, em parte, é verdade. Embora o governo paulista tenha iniciado no ano passado o processo de concessão dos trens metropolitanos, com a transferência para a iniciativa privada da administração de duas das sete linhas da CPTM, a maior parte da malha permanece estatal.
Também é verdade que no mundo inteiro são raros os exemplos de operações de trem, metrô e outras modalidades de transporte de massas bancados exclusivamente pelo valor das passagens. Pela importância, pela complexidade e pelos custos do sistema ferroviário, o Estado sempre entra com algum dinheiro para ajudar a viabilizar as operações. Mas, diante da quantidade de problemas, será que isso seria suficiente para resolver os da Supervia?
A situação não teria chegado a um ponto que justificaria uma quebra de contrato para se criar um modelo de parceria diferente do atual e procurar um novo concessionário para administrar o sistema de trens metropolitanos do Rio? A proposta, é, sem dúvida radical — até porque envolve quebra de contrato, algo que deve ser evitado ao máximo. Mas, será que a Supervia, ao não prestar os serviços que se comprometeu a prestar, não foi a primeira a desrespeitar o documento que assinou?

QUALIDADE DEPLORÁVEL — Os leitores deste espaço conhecem o apreço desta coluna pelas concessões e pelas PPPs, vistas como soluções eficazes para garantir o funcionamento de uma série de serviços essenciais à população. Mais de uma vez, foi dito aqui que, em alguns casos, o Estado deveria se afastar até mesmo do atendimento ao cidadão nas repartições: nas mãos de um prestador de serviço terceirizado, a qualidade do trabalho seria melhor e o custo, menos pesado para os cofres públicos.
Quanto menos se gastar com a manutenção do serviço público, mais dinheiro sobrará para se investir no bem estar do cidadão. Há, porém, situações em que não há mal algum em dar socorro financeiro ao operador privado. Sem querer discutir se a Supervia merece ou não merece ajuda do Estado, o serviço de transporte ferroviário é um deles. Em nome da necessidade de se garantir a prestação de um serviço destinado a assegurar um dos direitos mais sagrados do cidadão (que é o de se locomover com liberdade e segurança), é o caso de se rever o sistema de financiamento desse serviço tão importante.
Voltando ao tema do preço da passagem, o aumento para R$ 7 pleiteado pela Supervia pode até fazer sentido para a empresa. O dinheiro a mais permitiria que a concessionária, que já chegou a transportar até 700 mil passageiros por dia e que hoje carrega metade desse número, ou seja, 350 mil pessoas, cobrisse seus custos e melhorasse a qualidade da operação de seus 204 trens. Eles percorrem 270 quilômetros de linhas e servem a 12 municípios da Região Metropolitana (esses números constam de um artigo do deputado Dionísio Lins (PP), publicado neste jornal na sexta-feira passada).
Do ponto de vista do cidadão, e diante da qualidade deplorável do serviço que recebe, os R$ 5 cobrados pela passagem já representam um valor absurdo, exorbitante e indecente. Para tentar forçar a empresa a fazer seu trabalho com a qualidade que o usuário merece, o Estado sempre apela para o recurso mais utilizado pela administração pública brasileira. Sempre que um problema acontece, uma multa pesada é anunciada como a solução para todos os males. Na prática, porém, isso não resolve nem de longe o problema que realmente importa: o do usuário.
A Agetransp, agência reguladora estadual, que cuida das concessões de transportes no Rio de Janeiro, já puniu à Supervia com multas que chegam a R$ 30 milhões — dos quais apenas R$ 5,7 milhões foram pagos. Porém, e por mais sincera que seja a indignação da autoridade que aplica a multa, já passou da hora de continuarmos acreditando que isso resolverá o problema. A gravidade do problema exige uma solução radical. E essa solução começa pela abertura de discussão séria entre todos os interessados (inclusive os usuários) e pela busca de um novo modelo para a administração dos trens do Rio. Por que não pensar nisso?
(Siga os comentários de Nuno Vasconcellos no Twitter e no Instagram: @nuno_vccls)