Rio de Janeiro - RJ  - 11/07/2020 - COVID 19 - Coronavirus no Rio - Lavagem do Cais do Valongo - Foto Gilvan de Souza / Agencia O Dia - Gilvan de Souza / Agencia O Dia
Rio de Janeiro - RJ - 11/07/2020 - COVID 19 - Coronavirus no Rio - Lavagem do Cais do Valongo - Foto Gilvan de Souza / Agencia O DiaGilvan de Souza / Agencia O Dia
Por Thiago Gomide
Sabe aquela pessoa que quer esconder debaixo do tapete os problemas, como se eles nunca tivessem acontecido? O Cais do Valongo, como símbolo de um período terrível desse país, é um grande exemplo disso. Por séculos foi ignorado. Foi pavimentado para a chegada de uma Imperatriz. Foi esquecido ou relegado a lembrança de bravos. Descoberto, ganhou notoriedade, mas ainda assim bem menos do que deveria. Vem comigo que vamos fazer uma viagem no tempo para que perceba a importância desse Patrimônio Mundial da Humanidade.
1790. A área do Cais do Valongo funcionava a todo vapor no comércio de pessoas escravizadas, principalmente após a turbulenta mudança de endereço. Durante muito tempo, a Rua Direita, atualmente Rua Primeiro de Março, era o reduto dessas transações. Por estar perto do coração administrativo do Rio de Janeiro, começou um movimento para afastar as compras e vendas. Teve resistência.
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“A visão cotidiana daquelas pessoas escravizadas e tudo que envolvia sua compra e venda, ademais dos receios de contaminação por doenças que poderiam trazer de suas viagens, e o triste espetáculo de sua condição depauperada motivou a reclamação sistemática por parte da elite da cidade que por ali circulava. Tal situação levou os vereadores da Câmara a proporem em 1759 a transferência do local desse comércio de gente. A mudança, porém, contou com a firme oposição dos comerciantes de escravos levando a um impasse que só foi resolvido com a intervenção do Vice-Rei, Marquês do Lavradio, que efetivou a transferência em 1774”, escreveu o mestre em história Henrique Pedro Bresolin Montoza no artigo “Entre o Cais do Valongo ontem e o Museu do Amanhã: Guerras de memórias no Rio de Janeiro atual”.
Pense em armazéns, depósitos de escravos e demais dependências necessárias à atividade. Após a chegada do Príncipe Regente português e de sua Corte ao Rio de Janeiro, em 1808, o tráfico de africanos escravizados se intensificou, com a nova dinâmica urbana e as demandas da cidade que se tornara a sede de um dos mais vastos impérios globais da época.
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“Antes de alcançarem as casinholas disseminadas ao longo do Valongo, onde aguardam encontrar comprador, os recém-chegados têm de atravessar a alfândega, ser contados e taxados como qualquer mercadoria e percorrer algumas ruas da cidade. São abundantes os testemunhos sobre essas filas de homens cuja nudez ou quase nudez lhes sublinha a magreza e as feridas. Aqueles que a alimentação do Valongo não consegue recuperar são enviados à Santa Casa da Misericórdia, que atende e enterra mais de setecentos africanos por mês, nos anos 1830. Os outros são incitados pelos guardas a combater com o canto e a dança a saudade da terra natal e a tristeza de sua condição. Aos olhos dos compradores, a vivacidade é garantia de um bom investimento. Uma vez adquiridos, os escravos deixam o Valongo em uma nova viagem”, explica a professora da Universidade Paris-IV-Sorbonne Armelle Enders, no livro “A história do Rio de Janeiro”.
A professora Emília Viotti da Costa, recentemente falecida e um dos grandes nomes da pesquisa do período escravocrata, contribui para entendermos o dia a dia daquela região e da prática comercial em questão:
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"Durante o tempo em que funcionou o mercado do Valongo, podia-se assistir diariamente à venda de escravos. Os compradores procediam ao exame minucioso da mercadoria, que ali ficava exposta, às vezes durante dias e dias. As descrições que nos ficaram, feitas pelos viajantes que percorreram o Brasil na época, continuam a provocar mal-estar. Vendiam-se os escravos sem atenção aos laços familiares: pais e filhos, marido e mulher eram separados ao sabor das circunstâncias. Eram comuns os leilões de escravos. Ficavam os negros expostos sobre tablados e o leiloeiro os apregoava, anunciando em altos brados suas qualidades. Suas descrições afrontosas à dignidade humana não chocavam os habituais frequentadores de leilões".
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Muitos escravizados morriam no trajeto, por isso foi criado um cemitério. O cemitério dos pretos novos, também presente naquela região. O naturalista alemão Georg Wilhelm Freyreiss testemunhou a maneira como os restos mortais eram tratados: “No meio deste espaço (de 50 braças) havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saíam restos de cadáveres descobertos pela chuva”.
O site do Instituto dos Pretos Novos possibilita que você conheça o trabalho de preservação, tenha contato com outros detalhes históricos e ainda se programe para participar dos eventos e oficinas.
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Em 1831, já impactados pelas exigências e ameaças inglesas, o Brasil vê a força da escravidão perder sintonia. No ano anterior, o Cais do Valongo foi desativado, o que não implicava necessariamente na parada do tráfico de humanos. “Com a proibição formal do tráfico, esse mercado de escravos foi oficialmente fechado em 7 de novembro de 1831, mas a atividade ilícita continuou à vista de todos, em vários locais da cidade”, pontua a professora Armelle Enders, no livro “A história do Rio de Janeiro”.
As pedras pisadas, as correntes, os ossos, fragmentos de crânios, os artefatos de cerâmica sairiam de cena alguns depois. Entre tantos motivos, a recepção de uma rainha e a ocultação da memória. Jogava-se pás de cal. O dossiê do sítio arqueológico Cais do Valongo, disponibilizado pelo IPHAN em janeiro de 2016 e fundamental para o título aferido pela UNESCO, explica o fato:
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“Uma nova investida das autoridades em direção à região do Valongo se deu a partir de 1842, pela construção de um novo cais a fim de receber a esposa do Imperador Pedro II, evento que ocorreu em 1843.Foi decidido que esta seria construído sobre o antigo Cais do Valongo, atendendo a uma dupla motivação: receber condignamente a Imperatriz e ocultar materialmente a memória do lugar de desembarque de africanos escravizados”.
A antropóloga Tânia Andrade de Lima, que fez parte do time que desenhou a defesa do Cais do Valongo como “Patrimônio Mundial da Humanidade” complementa:
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“Os escravos foram esquecidos e, mais do que isso, eles foram deliberadamente apagados ao ser colocado sobre o Cais do Valongo o Cais da Imperatriz, num processo de superposição fortemente simbólico. Sobre a escória humana trazida da África foi colocada uma princesa europeia, uma Bourbon, a Princesa das Duas Sicílias. Ela pisando sobre os negros”.
Negros pisados na colônia. Negros pisados no Império. Negros pisados na República. Em 1911, na esteira das transformações urbanísticas promovidas pelo prefeito Pereira Passos, aquela área foi toda aterrada. E propositalmente incentivado que houvesse um esquecimento, uma não valorização, uma não investigação do que havia por baixo das muitas e muitas pás de cal.
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Como sabemos, a escravidão não terminou com a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. A pena de Princesa Isabel não conseguiu eliminar essa prática que se arrasta,de formas distintas, até hoje. As pedras pisadas do Cais do Valongo incomodaram, incomodam e sempre irão incomodar. 
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Neta de Zé Keti
Esse coluna, quando repórter da MultiRio, cobriu o momento que a neta do inesquecível Zé Keti conheceu o Cais do Valongo.
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É emocionante.