São Januário agora é patrimônio da cidade do Rio de Janeiro
São Januário agora é patrimônio da cidade do Rio de JaneiroFoto de Daniel Castelo Branco
Por Thiago Gomide
A arquibancada não dava um minuto de pausa. Era uma sequência interminável de cantos e gritos – alguns conhecidos, outros nunca tinha ouvido falar. No universo dos lugares-comuns, diria que estava em um caldeirão. Minha primeira e única vez cobrindo um jogo do Vasco, em pleno São Januário, me fez ter ainda mais carinho pelo clube e pelos fanáticos torcedores.
No campeonato de botão da família havia uma única excepcionalidade: quando o jogo era o Vasco contra algum adversário, as balizas eram trocadas. Meu primo Raphael, vascaíno, defendia que as traves do estádio eram diferentes, portanto nada mais justo que ter formatos que diferenciassem dos outros, com direito a “rede” sem furinhos. Coisas de torcedor. Um fato: era mais complicado vencer o Vasco do Raphael com esse ar de colina. O meu Fluminense, com direito aos craques Garrincha e Romário, suava.
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Admirar São Januário em 360 graus é parte importante para entender a dimensão. Naquele lugar o racismo foi enfrentado por um grande clube. Independente se foi o primeiro ou não a aceitar negros no time, o Vasco foi quem quebrou as pernas dessa irracionalidade. Naquele estádio o maestro Heitor Villa-Lobos mostrou ao mundo que era possível reger dezenas de milhares de estudantes. Naquele reduto, Getúlio Vargas fez discursos históricos e o Brasil viu nascer e se desenvolver os direitos pelo trabalho. Em São Januário, a Portela se sagrou campeã do Carnaval de 1945 – mesmo ano que o Vasco se afastou de uma sequência enorme de derrotas.
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Inaugurado em 1927, São Januário foi construído para enfrentar as perseguições políticas e raciais. Vitorioso em 1923, o Vasco contou com uma equipe repleta de negros e mestiços. Muitos defendiam a expulsão do clube do campeonato do Rio de Janeiro. A saída exigida era a construção de um estádio próprio. Acreditavam que os portugueses, grande maioria de associados, não conseguiriam.
Finalmente São Januário se torna patrimônio histórico e cultural do Rio de Janeiro.
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Vasco contra Fluminense, Flamengo e Botafogo
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No finalzinho de 1923, Fluminense e Vasco estavam em lados opostos.

Mas não dentro de campo.

Os cruzmaltinos lutavam contra as vontades políticas dos tricolores (com apoio de Flamengo e Botafogo), que desejavam barrar analfabetos, pessoas com subempregos e os atletas profissionais. Futebol era papo de amador, defendiam.

“Havia basicamente duas situações que a Liga tentava evitar: o profissionalismo dos jogadores e a presença de jogadores analfabetos nos times da liga. O combate ao profissionalismo era mais complicado de ser feito, pois na maioria das vezes os jogadores eram registrados em empregos obtidos através da influência de dirigentes e simpatizantes dos clubes”, escreveu o historiador João Manuel Casquinha Malaia Santos em sua tese de doutorado.

Muitos comerciantes vascaínos, em especial os portugueses, contratavam os atletas para seus estabelecimentos e não obrigavam a trabalhar. Mais: até davam um extra para jogarem. Burlou-se assim uma das obrigações.

Para o segundo ponto foi contratado um time de professores para capacitar os atletas. Era a educação servindo, para não variar, como resistência.

Mesmo com essas atitudes, continuava a perseguição ao campeão de 1923. Os camisas-negras, como eram conhecidos, atropelaram. Foi o primeiro clube a levantar o caneco no Rio de Janeiro com pobres, negros e analfabetos no elenco.

Fluminense, Flamengo, Botafogo, Bangu e São Cristóvão, então, criaram a Associação Metropolitana de Esportes Athleticos, conhecida como AMAE. Quem quisesse se associar precisava seguir as regras. O Vasco, por exemplo, teria que eliminar mais de dez jogadores.

De maneira corajosa, o Gigante da Colina tomou a decisão de romper. Isso chocou a opinião pública. Não esperavam atitude tão drástica.

A carta que o presidente vascaíno José Augusto Prestes enviou para o tricolor biliardário Arnaldo Guinle, então presidente da AMAE, é uma pérola. Duas partes estão aqui:

“Os privilégios concedidos aos cinco clubes fundadores da AMEA e a forma pela qual será exercido o direito de discussão e voto, e feitas as futuras classificações, obrigam-nos a lavrar o nosso protesto contra as citadas resoluções.

Quanto à condição de eliminarmos doze (12) dos nossos jogadores das nossas equipes, resolve, por unanimidade, a diretoria do Club de Regatas Vasco da Gama não a dever aceitar, por não se conformar com o processo pelo qual foi feita a investigação das posições sociais desses nossos consócios, investigações levadas a um tribunal onde não tiveram nem representação nem defesa”.

Resultado: em 1924 tivemos dois campeonatos cariocas.

O organizado pela nova entidade foi vencido pelo Fluminense e o dos outros clubes foi vencido pelo Vasco.

A batida de pé foi fundamental para alterar os rumos do futebol no Brasil – além de aprofundar os debates sobre preconceitos raciais e sociais.

Em 1925 os clubes voltariam a formar um mesmo grupo. O campeão foi o Flamengo.

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Quem lutou para São Januário ser patrimônio?
O projeto de lei que sedimentou esse título à São Januário foi desenhado pelos vereadores Renato Cinco (PSOL), Tarcísio Motta (PSOL) e Paulo Pinheiro (PSOL), em 2017.