Colunista recorda o lançamento de " O canto da cidade", disco que alavancou a carreira da cantora Daniela Mercury e que balançou a Apoteose
Por Thiago Gomide
Enquanto subíamos a escada do navio, meu pai alertava para que prestasse muita atenção. “Segura firme. Se cair, vai para o mar”, dizia com frequência. Regularmente a escada de ferro, que era do tipo Santos Dumont, balançava com o sabor do vento, proporcionando um desafio ainda maior. Uma rede de proteção sempre esteve a baixo, mas só hoje consigo perceber a presença. Na época era uma escalada pela sobrevivência, misto de aventura e medo.
O porto do Rio de Janeiro não era lugar para crianças na década de 1990. Não tinha sorvetes, barraquinhas de pipoca, cinema ou campinho de futebol. Era graxa, trabalhadores suados, aquele clima sujo do centro da cidade, prédios com janelas quebradas, a perimetral escura, com som de buzinas de automóveis. Domingo ( às vezes sábado) a noite era dia de acompanhar papai na visita à navios cargueiros. “Você precisa conhecer o trabalho que paga sua escola”, repetia, talvez esquecendo a idade do interlocutor.
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Em 1992, a cantora Daniela Mercury estourou com “O Canto da cidade”. Igual a muitos brasileiros, fiquei viciado na música. Passava um bom tempo grudado no rádio ou nos programas televisivos esperando a performance da baiana. Minha mãe teve que comprar o disco, que foi sucesso absoluto na minha vitrolinha portátil. Os versos “O gueto, a rua, a fé / Eu vou andando a pé / Pela cidade, bonita/ O toque do afoxé / E a força, de onde vem? /Ninguém explica, ela é bonita” me tiram do eixo até hoje. E, de certo modo, refletem bem o que acredito e defendo. A cidade que se constrói nas andanças. Os cantos que se refletem nas descobertas.
Mexendo insistentemente em um bombril na ponta da antena, um homem tentava fazer com que a TV da sala de reunião do navio funcionasse. Nada de melhora. Aquele insuportável chiado, que por vezes era rompido com uma linha atravessando a tela e permitindo alguns segundos de prazer. Foi dessa maneira que acompanhei o especial de Daniela Mercury na Globo em 1992. Na minha identidade, 7 anos. Protestei, mas era em vão. Nenhuma alma conseguia fazer aquela joça manter mais de um minuto de consistência. Paciência, me disseram. No dia seguinte, os jornais que meus pais assinavam só trouxeram notinhas do show gravado na Apoteose.
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Dedilhando os discos do acervo da Rádio Roquette-Pinto, eis que pinço a preciosidade. Quase 30 anos depois. Fitando por alguns segundos, esse momento de minha vida veio como uma catarse, um vendaval baiano, um delírio de priscas eras. Parece que foi outra encarnação, sem internet, com TV piscando, com meu pai dizendo “segura firme. Se cair, vai para o mar”. Devolvi o LP para o canto de origem, fechei a porta e segui meu dia de trabalho lembrando “Mil voltas o mundo tem / Mas tem um ponto final/ Eu sou o primeiro que canta/ Eu sou o carnaval”.
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Cassiano
Cassiano foi extrato de como o Brasil trata grandes obras. Apesar do trio de ouro musical ("Coleção", "Primavera" e "A lua e eu"), morreu no limbo, esquecido.
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A construção artística de Cassiano vai muito além, A coluna indica escutar o disco Cuban Soul 18 Kilates, de 1976.