Uma frase do Osvaldo, vendedor de doces no Morro do Juramento que nunca esqueci: "Cada um compra o sonho que quer"
Por Luarlindo Ernesto
Dia desses, em emergência bancária, saí do cativeiro. Aproveitei para dar um rolé. Acabei na casa do Gustavo Ribeiro, amigo legal. O cara entende tudo de internet. É logo alí, em Vicente de Carvalho. Do carro, vejo gente, comércio, poucos ônibus, bicicletas, ambulantes, motocicletas, carros na contra mão e avançado sinais de pedestres, tudo igualzinho como em 2019, ou 2020.
Passei em frente à Praça de Vicente de Carvalho e a memória retrocedeu ao final dos anos 1980. José Carlos dos Reis Encina. Lembram dele ? E do Escadinha ? Lembram? Pois bem, eu estava em frente ao Morro do Juramento, que foi o reduto do cara. Mas, amigas e amigos, foram os dias inteiros que passava no morro, tentando entrevista com o traficante. Fui apresentado pelo compositor Beto Sem Braço, que também já faleceu. Beto era compadre e amigo do Escadinha.
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Um belo dia, cheguei na casa do Beto, em Jacarepaguá, por volta das 8 horas da manhã. Ele me recebeu com abraço de um braço e um copo enorme de caipirinha. "Sem gelo, por favor," pedi. "É, faz parte da guerra pela notícia".
Tudo isso para ter acesso ao morro e ao bandido. Que loucura. Antes de ter carta branca para subir a comunidade, enfrentei muito tiro. Escapei das balas e nem me recordo quantas foram as ocasiões. Em uma dessas idas ao morro, descobri um doceiro, na cara do gol. Ali, na carrocinha do Osvaldo, almoçava os docinhos que ele vendia. Já pensaram? Muitas vezes, sem tempo para almoçar, me alimentava desses quitutes.
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Até que um dia, como não consegui descer o morro, resolvi preparar comida lá mesmo. Osvaldo conseguiu uma lata vazia, de 20 litros, limpa. Ele mesmo providenciou os ingredientes que encomendei: legumes, verduras, meio quilo de músculo bovino e uns salgados para dar gosto.
Porque não desci o morro? A PM tava fazendo uma blitz em toda a favela. Tiroteio infernal, com direito a helicóptero e tudo mais. Cansei de ficar mal alimentado. Preparei a gororoba entre a porta de birosca e uma enorme pedra. Mas, sair dali? As balas assobiavam por tudo que era canto. Nós estávamos abrigados, cozinhando um sopão, na fogueira improvisada. E, ainda, convidei Osvaldo para o banquete.
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O ambulante se tornou uma fonte de informações. Ele sustentava mulher e dois filhos como ambulante. Claro, nunca revelaria isso à polícia, ou aos bandidos... Mas, voltei ao Juramento em outras ocasiões. Até ajudei colegas norte-americanos e franceses que tentavam entrar na favela. Não comeram linguiça assada no prato fundo, queimada na cachaça em chamas. Tinham medo dos tiros e zelavam pela higiene...
A fuga cinematográfica do Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande repercutiu no mundo. Escadinha, em 31 de dezembro de 1985, foi resgatado, com ajuda de helicóptero, pelo comparsa José Gregório, o Gordo, E foi o Gordo que avisou, por telefone, sobre o êxito na operação de resgate do amigo. Corri para a casa dos pais do traficante, alí, pertinho do Juramento. Ih, tinha um batalhão de repórteres. Até o Gabeira estava lá, entrevistando o pai do Escadinha, o Chileno.
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Então, o bandido, que era considerado pé de chinelo pela polícia, alçou fama internacional. Daí a presença dos jornalistas de outros países. Dos bandidos daquela quadrilha, nem mesmo lembro as fisionomias. Só lembro mesmo é do Osvaldo. Será que ainda é vivo? Será que foi infectado pela covid? Ainda vende doces?
Uma frase dele, quando perguntei porque vendia doces pertinho da boca de fumo, nunca saiu da minha mente: "Cada um compra o sonho que quer".
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