Luarlindo Ernesto, repórter do Jornal O DIA.Daniel Castelo Branco

Muitos anos se passaram sem que eu soubesse do paradeiro do cabo Anselmo, triste figura que brilhou no noticiário nacional em março de 1964. Morreu dia 15 último em um hospital de Jundiaí, interior de São Paulo. O jornalista Leandro Mazzini, deu uma pequena nota em sua coluna na 'Isto É', no início do dia 16.
O cabo, aliás, ex-cabo, acabou virando notícia nacional quando iniciou o que ficou conhecido como a 'Revolta dos Marinheiros, no dia 25 de março de1964.
Ele era o presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais do Brasil, a AMFNB, entidade considerada ilegal pelo regime disciplinar da Marinha e, assim mesmo, comemorava dois anos da fundação da entidade dos praças. Eu, jovem repórter, fui cobrir o evento. Já sabia que iria encarar um furdunço. Um ano antes, 1963, já havia acontecido um movimento com sargentos do Exército e a coisa ficou complicada.
O país estava varrido de boatos, de acusações contra o presidente João Goulart (com tendência à esquerda) insatisfação nas Forças Armadas, enfim, ambiente conturbado, e abarrotado de fake news. Eu trabalhava para um jornal que apoiava ostensivamente o presidente Goulart, independentemente do meu lado político e iria descrever o que rolasse na reunião dos marinheiros.
O prédio do sindicato, no bairro do Pedregulho, em São Cristóvão, tá lá, até hoje. Cheguei cedinho e vi que a reunião iria ser complicada. Evidente que iria ser mais política do que festiva. Tratei de achar o telefone, minha arma de trabalho, e pedi reforço ao jornal. A tropa dos fuzileiros chegou e cercou o prédio do sindicato.
Cabo Anselmo discursava e começou a inflamar os marinheiros contra os oficiais. O jornal enviou outro repórter, Waldinar Ranulfo, mais velho e experiente. Fiquei mais tranquilo. Mas, subitamente os fuzileiros
entraram no prédio, sem armas, e abraçaram os marinheiros. Aderiram ao movimento. Pronto, tava a confusão formada. Waldinar ficou na entrada do sindicato e eu posicionado ao lado do Anselmo, no palco. Guardava as reações do cara. Tudo para descrever o semblante, os gestos, as falas com palavras de ordens.
O cara era um artista. Eita! Chega a tropa de choque da Polícia do Exército. Ih, ninguém entra, ninguém sai. Foram mais de 24 horas mantido "incomunicável" no sindicato. Tomei conta do telefone da entidade para ter como enviar notícias para a redação. Coloquei o telefone sob a mesa da secretária do presidente e, foi ali que o então tenente Ferro Costa, dos Fuzileiros, me encontrou.
Ele queria usar o telefone. E ligou para o tio, o deputado federal Clóvis Ferro Costa, da UDN, partido de oposição ao presidente Goulart. O detalhe: o deputado era da ala chamada de Bossa Nova, mais liberal e
mais à esquerda do partido político. Encurtando a história: o tenente me chamou para fugir, pelos fundos, para relatar ao Comando Geral dos Trabalhadores, o CGT, o que estava rolando no sindicato. Claro que topei.
Fugimos pelos fundos, estivemos na casa do deputado e depois na reunião do CGT. Vitória! Eu estava com matéria para abastecer dois jornais.
Voltamos ao cativeiro no sindicato, cabo Anselmo ainda discursava. Passei matéria. Tinha fome, sede, sem dormir, sem contato com a família (só com o jornal). Todos foram presos.

E, neste dia, do outro lado da cidade, em Laranjeiras, o governador Lacerda foi informado que a tropa do contra-almirante Aragão, dos Fuzileiros iria sair do sindicato e tomar o Palácio Guanabara de assalto. Lacerda mandou cercar o palácio com caminhões da Comlurb e declarou que iria resistir. Que confusão (a coisa piorou quando Goulart, dias depois, anistiou todos os militares). Ih, mais encrenca para desestabilizar o regime.
No mês seguinte, João Goulart foi deposto pelo movimento dos militares em 31 de março. E, assim, continuei minha vida de jornalista. Anselmo, bem mais adiante, foi desmascarado e confessou que estava
infiltrado, passando informações para o CENIMAR, órgão da inteligência da Marinha. Perdeu o emprego e nunca foi reabilitado nas Forças Armadas. Nunca mais tive notícias dele. Somente após reportagem, anos
depois, com a volta da democracia, em que reconheceu que era traidor, ou espião.
Bem, lá se vão 58 anos.