Por bferreira

Rio - Algumas ainda estarão arrastando as saias rodadas de volta pra casa quando este jornal chegar às bancas. O Desfile das Campeãs terá sido o último suspiro da alegria tão efêmera que, para elas, dura a eternidade de um Carnaval. As que não desfilaram como campeãs encerraram esse ciclo na manhã da Quarta-feira de Cinzas, nas fileiras da Unidos do Anil, última escola a cruzar a Intendente Magalhães, em Campinho, pelo Grupo de Acesso D. Embora o ofício mereça estátua, não dá camisa a ninguém, nem vale nota: são baianas de escola de samba.

Rosângela%2C Zenilda e Jussara (alto)%2C na concentração%2C e Wanda%2C na pista%3A baianas merecem estátuaAlexandre Medeiros / Agência O Dia

Vera Lúcia dos Santos da Silva, de 65 anos, já voltou ao batente na quinta-feira lá no Paraíso. Não aquele com que todos sonhamos, mas, sim, o do 4º distrito de São Gonçalo, onde ela mora e trabalha como diarista e passadeira. A clientela é da região, Gradim, Neves, Porto da Madama, onde ela consegue R$ 50 por diária, longe dos R$ 80 (por baixo) que cobram na Zona Sul do Rio. Este ano, Vera saiu pela segunda vez no Império da Tijuca, mas há 20 anos desfila pela Porto da Pedra, que é lá de São Gonçalo: “São só nos dias de Carnaval que eu saio da rotina. O resto do ano é só sacrifício.”

Não tem essa de domingo. Hoje é dia de acordar às 5h30 para Wanda Aguiar Motta, de 70 anos, abrir a birosca da Rua Begônia, no bairro Bom Pastor, em Belford Roxo, e passar o dia “aturando os cachaceiros”. Ela dá uma parada às 13h, descansa à tarde, volta às 18h e vai até meia-noite, quando fecha o trailer. De segunda a segunda. “Se eu viver só de trabalho, no meio dos cachaceiros, isso é vida? Ninguém resiste. Quando passa o Carnaval, eu fico murcha em casa, esperando o próximo”, diz Wanda, na concentração do Império da Tijuca, e sua voz é um desencanto só de lembrar que a alegria está por um triz.

Moradora do Vilar dos Teles, em São João de Meriti, Wanda tenta descontar o desencanto desfilando em várias escolas: Inocentes de Belford Roxo, Rocinha, Porto da Pedra, Viradouro, União da Ilha e Império da Tijuca foram as eleitas este ano, agenda de deixar muito cuiqueiro de queixo caído.

Zenilda do Nascimento, de 58 anos, não faz por menos. Praticamente nasceu numa quadra de agremiação. Desfila desde os 13 anos. Parece letra de samba: foi passista, brincou em ala, dizem que foi o grande amor de um mestre-sala. Ela não confirma a intriga. “Fiz de tudo nessa brincadeira, mas tenho meus segredos. Hoje me divirto na São Clemente, na Grande Rio e na Cubango”. Na folia da sobrevivência, Zenilda batalha o salário mínimo como babá e completa o orçamento como diarista na classe média abastada de Itaipu, em Niterói. Amanhã é dia de branco, ela vai levantar cedo, encarar ônibus cheio no Arsenal, em Tribobó, São Gonçalo, para chegar antes das 7h a Itaipu.

Já Jussara Pereira, também de 58 anos, não sai de casa para dar duro. Ela enche a boca para dizer que sua “miniconfecção” funciona num cômodo da casa de Padre Miguel, onde tem o maior prazer de costurar as roupas de natação das crianças da Vila Olímpica Mestre André, no mesmo bairro da Zona Oeste. “Na Unidos de Padre Miguel, eu já fui ritmista, passista e hoje presido a ala das baianas”. A partir do segundo semestre, Jussara abre alas na sua confecção para as fantasias de escolas de samba. Isso sem abrir mão das encomendas. “Dependendo do modelo, tem vestido lá da minha máquina que sai por R$ 100”, diz Jussara, que é filha de Osvaldo Brás, um dos fundadores da Unidos de Padre Miguel.

Embora já seja avó, Rosângela de Oliveira Vicente é a caçula das baianas desta coluna. Na concentração da Mocidade, ela ameaçou mostrar a identidade para provar os 43 anos. “Quatro filhos e dois netos. E desfilo de baiana desde os 33”, garante Rosângela, moradora da Vila Vintém, berço da Mocidade. Passada a folia, domingo é dia de trabalho para a cuidadora de idosos, que tem clientela fiel na Tijuca. “Quando chega agosto, setembro, eu vou reduzindo a carga, aceitando menos clientes, porque já começam os ensaios. O cinto aperta um pouco, mas como vou viver sem isso?”

Pergunta a que Anete Martins, de 76 anos, não consegue responder sem se emocionar. Baiana da União da Ilha há 30 anos, ela reuniu todas as forças para ir até a Marquês de Sapucaí na Segunda de Carnaval. Algumas horas antes foi a missa de 30º dia pela morte do marido, Laércio. “Ele era alpinista, tinha paixão pelo que fazia, entendia a paixão que eu tenho por desfilar. Todos os anos ele vinha ajudar a me vestir, incentivava, esperava na dispersão. Esse ano vai ser uma sensação estranha. Nem sei se vou conseguir cruzar a pista.”

Conseguiu, sim. Assim como está conseguindo levar adiante a vida de dona de casa, sozinha. “Joguei as cinzas dele do alto do Corcovado e prometi seguir desfilando, pois ele dizia pra gente não deixar de fazer aquilo que se gosta”. Depois da catarse na Sapucaí, Anete voltou à rotina da casa, agora mais vazia. Vai viver sua saudade longe da fantasia. Assim como Wanda, vai esperar com fastio pelo próximo Carnaval, e Vera vai ralar para embolsar a diária de R$ 50. Cada uma vai levar a sua cruz o ano inteiro, e que Deus lhes dê saúde para que rodem as saias outra vez. Que ano que vem tem mais.

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