Por helio.almeida

Rio - O som dos tambores e atabaques ecoa em muitos terreiros neste domingo. A tradicional celebração a Ogum ocupa todo o fim de semana, entre os seguidores da umbanda e do candomblé, com ladainha, feijoada, pagode, rosas vermelhas. Quarta-feira passada, só na paróquia de Quintino, pelo menos 150 mil pessoas foram pedir a bênção a São Jorge. Nada impede que os fiéis de um credo circulem pelas searas de outro, o sincretismo entre as religiões se traduz da forma mais transparente na figura mítica do Santo Guerreiro. E se há “templo” onde essa generosa mistura circule livremente ele se chama Mercadão de Madureira.

Mercadão de todos os credosAlexandre Medeiros / Agência O Dia

Na terça-feira, véspera do Dia de São Jorge, “o maior mercado popular do Brasil”, como diz a placa, fervilhava. Olho-de-boi para as guias, contra inveja e mau-olhado, a unidade a 50 centavos. Barcos para oferendas, temos de até três metros, o de um metro sai por R$ 69,80. Mais barato que o chapéu Panamá, com a fita vermelha do Zé Pelintra, que custa R$ 75, mais alinhado não há. Por R$ 2,00 se leva o coité para servir a cerveja clara ao orixá guerreiro, nas tantas oferendas de se agradecer.

A senhorinha pensionista se aproxima da vendedora da Loja dos Orixás Iluminados, e pergunta se ela sabe onde se vende capa para imagem de São Jorge. “Aqui mesmo. Qual o tamanho?”. A devota católica tira da bolsa uma sacola de mercado, onde está dobrada a capa vermelha com bordado dourado. Enquanto a vendedora vai pegar a mercadoria, ela admira as guias penduradas acima do balcão, passando os dedos pelas contas coloridas. “Bonitas, não é?”.

Medida a capa vermelha, o justo tamanho da imagem de São Jorge que reluz num oratório de madeira na sala, ela paga os R$ 10 e sai feliz. “Troco a capa uma vez por ano, sempre no dia do santo. Aqui no Mercadão é sempre esse movimento na véspera, eu até gosto, mas sempre esqueço a loja que comprei”, a senhorinha ri. E vai embora no meio da multidão, cruzando com gente que é de outro santo, mas guarda o mesmo fervor.

Vela de São Jorge a R$ 2,50. A do Anjo de 9 dias sai por R$ 5,50. Para as preces continuadas. Na Peixaria Domenico Barone o quilo da corvina de linha, a preferida para o ensopado de nove entre dez sambistas, está por R$ 17,99. E leva a cabeça para fazer o caldo do pirão. No Mundo dos Tecidos, se pagar em dinheiro tem 10% de desconto na camisa de São Jorge, fica por R$ 53,90. Parece cara, mas tem bordado em paetê. Um luxo só.

Tem fila no balcão do estúdio fotográfico para fazer camisa ou painel com foto dos filhos ou da pessoa amada. Um negão com pinta de zagueiro soletra para o rapaz que anota os pedidos: “Para Gracylenne, com todo meu amor, Altair”. E entrega a foto dos dois juntos, um dia de folga na Quinta, o lago lá atrás com os pedalinhos. “Cinco anos de casados, me deu duas filhas. Tenho que agradecer a São Jorge”. Com certeza, Altair. Vai na fé.

A dois corredores dali, a espada em metal do Santo Guerreiro, com punho adornado em azul, sai por R$ 29,90. Chifre de boi a R$ 1,99. Já o de búfalo fica a R$ 9,90. As pessoas com as listas nas mãos. Camarão seco para a cozinha dos orixás, o quilo a R$ 28. Azeite de dendê, canjica vermelha, feijão fradinho, cará. Por R$ 2,00 se leva o defumador 'Chama Freguês'. Um banho de espinheira santa, outro de sal grosso para descarregar as energias negativas. Para jogar os búzios, o quilo sai por R$ 49,90. Tomara que se vislumbre a sorte.

Mãe e filha chegam ao corredor das lojas de animais. No Rei dos Cabritos, onde um dito cujo sai por RS 200, escolhem um casal de patos. Oitenta reais. Se levar só a pata, é cinquenta. “Mas essa pata bota ovo?”, pergunta a mãe. “Bota, é uma pata”, garante o vendedor. O diálogo parece sem sentido, mas é pertinente nesse mundo onde tudo soa mais místico que real. A mulher manda embrulhar os patos. O casal é colocado numa caixa grande de papelão.

E lá vão mãe e filha com a caixa que tem furos feitos com caneta, que os bichos têm que respirar, chegar vivos ao destino. Elas não dão muita conversa, dizem só que é pra festa do santo. Os sacrifícios e as crenças que alimentam a fé. Os corredores do Mercadão vão despejando na rua centenas de pessoas, já no fim da tarde. As duas fazem sinal para o ônibus que vai para Marechal Hermes. As duas embarcam aos trancos, os patos se debatendo na caixa, no meio das sacolas, das pessoas cansadas de guerra, do dinheiro contado, de tanta esperança de a vida melhorar.

O ônibus apinhado parte, enfim. Gaiola do São Francisco no rio de gente da Edgard Romero. Eu também vou. São Jorge me guie. Ogum me acompanhe.

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