Por daniela.lima

Rio - Foi como se tirassem o mar do Arpoador, o calçadão de Copacabana, a Portela de Oswaldo Cruz. E lá se vão quase três anos. Como um lugar pode suportar tanto tempo a angústia de perder sua identidade? Sem os bondes singrando por suas ladeiras, Santa Teresa é um bairro sem alma. Estão lá os trilhos, sem serventia, como a lembrar a todos que o bonde é um cadáver insepulto. E é diante deles que o artesão Getúlio Damado sonha todos os dias poder ouvir outra vez o som dos bondes subindo e descendo as ruas de Santa Teresa.

Cenas cariocas%3A Um bonde chamado desejoAlexandre Medeiros / Agência O Dia


“É muito triste esse silêncio, essa ausência. Só quem não conhece ou faz pouco caso de nossa história não percebe a importância do bonde para o bairro e para a cidade”, diz Getúlio, em seu ateliê Chamego Bonzolândia, às margens da Rua Almirante Alexandrino, no mesmo largo onde instalou sua primeira banquinha, há 29 anos. “Era um caixote desses de feira, com algumas peças, logo ali ao pé da escada. Muito governante tentou me tirar, mas resisti, com minha arte.”

Sensibilidade não é mesmo o forte de nossos governantes. Por isso os bondes amarelos, alguns pintados com corações vermelhos pelos próprios moradores do bairro, sumiram da paisagem. Sem manutenção, sem reposição de peças, eles foram sendo sucateados até que um grave acidente, em agosto de 2011, deixou cinco mortos e pelo menos 40 feridos. Foi uma espécie de ‘deixa’ para que o governo tirasse os bondes de circulação, justificando a medida como necessária para restaurar um sistema de transporte que ele mesmo jogou no limbo.

Getúlio trabalha com sucata, faz tampa de desinfetante virar bico de pássaro. Latas de leite em pó viram asas em suas mãos. A paixão pelo bonde é declarada. O ateliê é a reprodução de um vagão, ornamentado com as obras que diariamente saem de materiais que ele encontra no lixo, recolhe nas ruas. Nos tempos do bonde, muita gente fazia questão de saltar para visitar o ateliê. “Caiu muito o movimento. Ainda estou conseguindo pagar as contas em dia, mas está muito difícil sair para comer uma pizza com a família no fim de semana, como a gente fazia”, diz Getúlio, três filhos, uma enteada e quatro netos.

Vítor, o filho mais velho, que segue os passos do pai na arte e na saudade do bonde, faz coro. “Dá até um vazio na gente. O pessoal parava aqui, conversava, via as peças. Agora, receber uma visita é raridade”. De fato, em pouco mais de duas horas de conversa, só pararam ali duas pessoas, de carro, pedindo informações. 

Há peças de Getúlio espalhadas mundo afora. Algumas até em museus da França, da Alemanha, da Itália. No dia 18 de junho, em plena Copa, ele estará participando de uma exposição no Centro Cultural da Justiça Federal, na Avenida Rio Branco. O bonde, sua marca registrada, estará lá. Certa feita, a pedido do saudoso Joãosinho Trinta, ele fez um bonde de madeira para 40 pessoas, que foi empurrado num desfile de Carnaval na mesma Avenida Rio Branco. “Ele duvidou, mas eu prometi, aí cumpri”.

Tem gente que não é assim. O governo prometeu levar os bondes de volta ao bairro, único lugar onde eles ainda circulavam no Rio. Mas não os bondes originais, abertos, com estribos, com passagem barata, como desejam os moradores do bairro. Os que virão por aí, se um dia chegarem, serão fechados, mais caros e de bitola diferente. Por isso os trilhos centenários estão sendo trocados. E a passos de tartaruga.

Anunciaram a volta para o final do ano passado, mas nada. Outra previsão era para março. Março já foi.

A última previsão do governo do estado dá conta que o bonde voltará a circular em junho. Mas basta uma visita às obras para ver que é mais uma falácia. Na terça à tarde, por volta de 16h, apenas três operários trabalhavam na troca dos trilhos na Rua Carlos Brandt, trecho inicial do percurso, ao lado da Ladeira do Castro. E um deles nem trabalhando estava. Sentado no meio-fio, discutia pelo celular com o que parecia ser a sogra, a se julgar pelo diálogo entreouvido: “A senhora não tem ideia do que eu sou obrigado a aturar da sua filha”.

O pessoal de Santa Teresa também é obrigado a aturar muita coisa. E só quer sua alma de volta, que a vida volte a andar nos trilhos. Getúlio olha o fim da tarde colorindo de laranja a ladeira, e pensa em como o bonde vinha lotado àquela hora, as pessoas voltando do trabalho, cansadas de mais um dia. Em seu mundo de fantasia, o bonde ainda vive.

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