Por adriano.araujo

Rio - Há coisas difíceis de entender. Só mesmo vivendo. Como explicar que, no meio da agitação da Presidente Vargas, ali entre a Saara e a Central do Brasil, exista um lugar onde se pode ler, namorar, conversar, estudar, ouvir música, assistir a filme, comer, beber ou deitar em um pufe e pensar na vida? E tudo de graça, com instalações modernas, ar-condicionado, segurança? Para entender, é preciso dar um tempo na pressa do dia a dia e entrar no que parece ser só mais um caixote de concreto na paisagem do Centro. É a Biblioteca Parque Estadual.

Tem coisas que só o poetinha pode explicarAlexandre Medeiros / Agência O Dia

Não espere nada de uma biblioteca tradicional. Nem o silêncio. Um saudável murmurinho perpassa salões e corredores. Na tarde de terça-feira, um grupo de senhoras visitava a biblioteca. Uma delas ficou encantada com as grandes espreguiçadeiras de palha voltadas para um jardim interno, onde fica um simpático café. “Isso é muito confortável”, comentava ela com a colega de grupo, enquanto o guia explicava que ali elas tinham à disposição três milhões de músicas, 20 mil filmes, 200 computadores com acesso à internet, salas para reuniões de grupos, auditório, teatro e jardim. Ah, sim, e mais de 200 mil livros e documentos.

Um senhor via um filme de guerra na ala reservada ao audiovisual, enquanto dois rapazes cochilavam assistindo a um DVD de ação, em uma das cabines com divisórias de madeira. Pouco antes, eles haviam deixado suas mochilas nos armários trancados a chave pelos visitantes. Estavam de camiseta, bermudas e chinelos de dedo, em contraste com o rigor dos vestidos de chá da tarde do grupo de senhoras. Mas não foram tratados de forma diferente pelos trajes ou pelo jeito. Ao que tudo indica, trata-se de um lugar democrático.

Os guias são um capítulo à parte. Educados, gentis, prestativos. Alguns são incapazes de esconder o entusiasmo de trabalhar ali. Uma delas é Luisa Alfinito, de 24 anos, que faz faculdade de Turismo. Ela é uma guias da exposição sobre os 100 anos de Vinicius de Moraes, em cartaz na biblioteca até 15 de junho. Confessa que não gostava muito do Poetinha. Mas por desconhecimento. “Muita coisa sobre ele eu aprendi aqui. E posso dizer que hoje gosto mais dele”, diz Luisa, pouco antes de receber mais uma visita de colégio. “As crianças vêm aqui e se deslumbram. Muitas foram obrigadas a estudar na escola a obra de Vinicius ano passado, que foi o do centenário. E quando vêm aqui e deparam com a mostra, superbem montada, acabam se encantando”, diz Luisa.

Na terça, uma turma de 23 alunos do sexto ano da Escola Sá Pereira sentou em roda debaixo da cascata de livros, uma das instalações da exposição de Vinicius. A partir da leitura do poema ‘O Poeta Aprendiz’, eles elaboraram desenhos, usando palavras pouco usuais em seu cotidiano, como grimpante, caprino ou bodoque. Um menino lourinho de óculos, com cara de perguntador, quis saber se a fama do poeta de ter muitas mulheres era, “tipo assim”, verdadeira. Saia justa para as guias, mas uma delas saiu-se bem: “Ele era poeta, sedutor e...”. Nem conseguiu acabar. O perguntador abreviou o pensamento: “Já entendi, é verdade então.” Todo mundo riu.

Lá do terraço, no último andar, se tem uma vista espaçosa do Centro, com a torre da Igreja de São Jorge e o prédio do antigo Ministério da Guerra em destaque sobre os sobrados da Saara. Vez por outra um corre-corre na Presidente Vargas dá ideia de que houve assalto por ali, fato infelizmente comum. Aqui dentro, a onda é outra. Um casal de adolescentes com roupa de colégio estadual se beija nem aí no sofá, enquanto um sujeito com cara de quem vai fazer concurso para o Banco Central deita os olhos em uma apostila de mais de cem páginas na escrivaninha em frente. As senhoras distintas já estão no café, comendo bolo de chocolate.

Uma das portas da biblioteca dá para a Rua da Alfândega, bem diante de uma loja de roupas com aqueles manequins de mulheres bundudas. Quem passa no fervor das promoções de R$ 1,99 talvez não perceba que ali ao lado um moleque de seus 15 anos está lendo um poema do Vinicius de Moraes. E sem ser obrigado pela professora.

Há mesmo coisas difíceis de entender. Mas a vida, como diria o poeta, está aí para explicar.

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