Por nicolas.satriano

Rio - A maioria das investigações envolvendo a suspeita de abuso sexual infantil sofre com a falta de provas físicas, evidências ou vestígios. Por isso, os laudos psicológicos das vítimas se tornaram peças decisivas dos processos criminais. No domingo, o DIA iniciou uma série de reportagens sobre os problemas envolvendo a produção de pareceres por psicólogos da Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima. Após denúncias de falhas técnicas e éticas, o Conselho Regional de Psicologia puniu os peritos da Dcav. Emerson Brant, único que ainda atua na delegacia, teve o pedido de cassação aprovado por unanimidade.

Segundo especialistas, em cerca de 85% dos casos o crime ocorre dentro da família, e as vítimas são sobretudo meninas entre 6 e 14 anos. A dificuldade é que a pouca idade exige preparo dos profissionais para identificar casos reais e falsas denúncias. Não há modelo, mas estratégias para, por meio da técnica psicológica da escuta, entender a complexidade do que os pequenos dizem. Para duas profissionais que trabalham na área há mais de 20 anos, um ponto central é ouvir todas as pessoas próximas à criança, inclusive o acusado — o que não é feito na Dcav.

O desenho é de um depoimento especial já na fase final do processoArte por Gustavo Moore e Nei Lima

A psicóloga do Núcleo das Varas da Família da Capital no TJ Glícia Brazil conta que o trabalho na área precisou ser construído. “Não há manual que ensine a ouvir criança. Isso vem da técnica de escuta”, explica ela.

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Glícia diz que ao longo do tempo fez uso de técnicas diferentes, mas percebeu que era necessário entrevistar todo o núcleo central de convívio das supostas vítimas. “Não posso ouvir somente a criança. Para ela, importa quem cuida dela. Às vezes é a avó ou uma tia”, afirma.

Ela prefere fazer o atendimento das pessoas próximas e da própria criança de modo conjunto em um único dia. “Primeiro, em geral, peço para a menina e quem cuida dela entrar. A criança começa a ser ouvida e o acusado vem uma hora e meia depois”, descreve.

Para a profissional, a dinâmica conjunta é importante para a avaliação geral de comportamentos, reações e emoções. Tanto sozinha quanto junto aos pais. Além da conversa, Glícia proporciona atividades adequadas à faixa etária para criar um ambiente de proximidade. Ela diz que pode ser um processo doloroso e admite que o núcleo sofreu críticas, mas garante que os resultados são importantes para identificar denúncias reais e casos de síndrome de alienação parental — quando um dos genitores quer afastar o filho do outro.

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A psicóloga Andreia Calçada, que também já atuou como perita do Juízo, concorda com a necessidade de entrevistar toda a família. Ela acrescenta que muitas vezes as crianças são induzidas pelos pais, especialmente durante disputas de guarda. “Criança mente sim ou manipula afetivamente, principalmente quando precisa se defender. Em meio a essa batalha, ela se alia a algum deles. Às vezes ela entende mal ou fantasia”, aponta.

Na foto%2C Glícia explica que cria ambiente de proximidade com a criançaMaíra Coelho / Agência O Dia

Ambas questionam a eficácia dos bonecos anatômicos usados na Dcav. Glícia conta que esse recurso deixou de ser utilizado no TJ há 15 anos porque as crianças chegavam “cheias de maneirismos da Polícia e isso confundia.”

As falsas denúncias ainda são tratadas como tabu e dados do TJ contrastam com os da Dcav. Em 2013, 70% dos casos registrados na delegacia se tornaram denúncias ao MP. Não há dados das Varas Criminais, mas nas de Família da Capital, apenas 20% se confirmam.

Novo modelo de atendimento

Na tentativa de aprimorar o atendimento às vítimas de abuso sexual infantil deve ser inaugurado em março o Centro de Atendimento ao Adolescente e à Criança (CAAC). O órgão idealizado por um grupo de promotores do Ministério Público Estadual visa a centralização dos serviços de saúde, exames e depoimento dentro do Hospital Souza Aguiar.

“O projeto pioneiro fica no centro, mas a ideia é expandir para que a criança não precise ir ao IML e nem à delegacia”, explica a promotora Patrícia Pimentel, uma das coordenadoras do projeto.

O atendimento será realizado por 10 profissionais entre psicológos, assistentes sociais, médicos e policiais. Na unidade, foram criadas três salas onde a vítima vai ser atendida por um pediatra e medicada, se for necessário. Em seguida, será registrada a ocorrência em um posto da Dcav que funcionará no local e o IML também terá sala própria para exames.

No mesmo espaço serão feitas as entrevistas qualificadas. Nessa sala, as vítimas serão ouvidas por profissionais treinados e os depoimentos serão gravados em aúdio e vídeo para instruir processos judiciais.

“Não é requisito que seja psicólogo. Preferíamos até que fosse porque são pessoas com habilidade específica, mas como houve muita resistência e outros profissionais estavam interessados a capacitação foi aberta”, diz a promotora.

Patrícia disse que o projeto é inspirado no Centro de Referência no Atendimento Infanto-Juvenil (Crai), que funciona em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul desde 2001. A coordenadora do Crai, Eliane Soares, contou que o núcleo gaúcho funciona de modo semelhante ao que será inaugurado no Rio. A diferença principal diz respeito aos depoimentos. “ O posto policial só serve para fazer o registro. A escuta é feita pela perícia psiquíca”, conta Eliane.

Essa equipe é composta por médicos e psicólogos do IML. No Rio, um dos que fizeram treinamento para começar a atuar no CAAC foi o psicólogo da Dcav Emerson Brant. Ele e Artur de Oliveira foram punidos pelo Conselho Regional de Psicologia pela atuação no caso que condenou o diretor financeiro da Creche Gente Inocente, Paulo Barcellos, em 2010.

A promotora Patrícia Pimentel disse desconhecer os autos do processo do CRP, mas acredita em uma perseguição aos profissionais que atuam com a Justiça. Há discordância entre o Conselho Federal e o Judiciário sobre a atuação dos psicólogos em casos de abuso sexual. Em 2010, o CFP quis regulamentar o trabalho dos profissionais nessa área, proibindo “a inquirição” de crianças por entender que o psicólogo não pode estar subordinado à outras instituições durante a avaliação. O MP contestou e a Justiça derrubou a resolução.

Desde 2010, também funciona no TJ o chamado depoimento especial. A medida evita que na fase de instrução dos processos as crianças sejam levadas para as audiências. Os depoimentos são intermediados por psicólogas em salas reservadas.

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