Pedro Serrano Divulgação

A queima da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo, no último fim de semana, trouxe à tona um debate que tem diversas dimensões.
Antes de mais nada, é preciso dizer que a prisão de um dos autores do incêndio, Paulo “Galo” Lima, é desnecessária e arbitrária, já que se tratou de um ato sem violência e sem vítimas, além do fato de ele ter se apresentado voluntariamente às autoridades policiais. Mais injustificada ainda é a prisão da mulher dele, Géssica, que sequer participou do ato e que é mãe de uma criança de três anos. Como se sabe, em 2018, o Supremo Tribunal Federal concedeu Habeas Corpus coletivo para substituir a prisão preventiva por domiciliar de mulheres que sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos.
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Em relação ao ato propriamente dito, há no mundo inteiro movimentos liderados sobretudo por jovens progressistas, que buscam abolir a celebração de símbolos opressores do passado. Os críticos desses movimentos obviamente têm diversos argumentos contrários. Há valor histórico? Há valor artístico? Há valor simbólico? Isso representaria um apagamento da memória? São muitas questões a serem ponderadas.
No caso específico do Borba Gato, é preciso observar que sempre foi um monumento tido pela elite paulista como de baixo valor estético, uma manifestação artística considerada popular do ponto de vista da concepção.
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Apesar de ser apontada como um símbolo da escravização e assassinato de indígenas, a estátua do Borba Gato foi construída fora desse contexto que remete à colonização e interiorização do país. O uso da figura do bandeirante foi pensado como elemento simbólico do progresso paulista para as comemorações do IV Centenário de São Paulo, nos anos 1950, assim como o Monumento às Bandeiras, o famoso Empurra-empurra, que fica junto ao Parque do Ibirapuera. A ideia era exaltar a Paulistânia como a máquina do progresso, do futuro, como mola propulsora da nação.
O que dizem muitos historiadores é que Borba Gato, diferentemente de seu sogro, Fernão Dias, que também foi homenageado dando nome a uma importante rodovia do Estado, não se destacou na história por ser um genocida de indígenas, embora não se possa descartar essa possibilidade. Consta que ele, inclusive, teria sido acolhido por grupos indígenas após ter matado um fidalgo português, e com eles convivido harmonicamente por cerca de 16 anos.
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O principal problema por trás do Borba Gato não é sua figura histórica ou o que ele de fato fez em suas andanças pelo Estado. A questão é que ele representa a ideologia bandeirante-paulista, que se estabelece a partir do final do século XIX e começo do XX, construída a partir de uma concepção de supremacia eurodescendente, marcadamente eugenista, que se utiliza dessas figuras do passado como símbolo de heroísmo e progresso, de um povo vencedor.
Essa ideologia foi concebida com base em teorias de hierarquia entre raças e pretendia privilegiar os imigrantes europeus e os eurodescendentes em detrimento da maioria negra e dos indígenas na distribuição da riqueza simbólica. Como exemplo disso, temos expressamente na Constituição de 1934 a determinação, em seu artigo 138, alínea “b”, para que o Estado brasileiro estimule a “educação eugênica”.
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Essa construção foi importante para constituir os quadros de referência do Estado brasileiro, bem como de nossa atividade econômica na iniciativa privada, e como estratégia para manter intacta a ideia de subalternidade racial do negro e do indígena, mesmo após a abolição da escravidão no país. Observe-se como ainda hoje os quadros da política, do judiciário e das forças armadas são formados predominantemente por brancos, bem como ocorre com os altos cargos das grandes empresas.
O uso dos bandeirantes como símbolo teve papel fundamental na criação dessa mitologia, que foi resgatada em outros momentos marcantes da nossa história, como por exemplo na chamada Revolução Constitucionalista de 1932 e na influência que essa ideologia exerceu na Constituição de 1934.
Portanto, para além da figura individual do Borba Gato, existe algo muito pior, que é a manutenção dessa ideologia eugenista até os nossos dias.
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Aliás, é bastante significativo que a queima dessa estátua aconteça exatamente em um momento como o que estamos atravessando. Basta olhar os dados da pandemia para constatar que há prevalência de mortandade entre idosos – pessoas que não têm mais função de trabalho – negros e pobres, em geral. A política de Estado genocida e eugenista que o Borba Gato simbolicamente representa está tão presente como sempre esteve.
No que diz respeito ao ato dos manifestantes, que não tiveram a intenção de destruir a estátua, mas de chamuscá-la e, assim, interferir em sua estética, pode-se dizer que a estátua queimada tem sentido histórico e político diferente do que tinha antes da ação e que, independentemente de sua forma, a intervenção teve conteúdo artístico, na medida em que altera o símbolo e a afetividade em torno dele. Sua legitimidade ante a Constituição de 1988, que não é neutra e estabelece princípios igualitários, humanísticos e antieugenistas, é evidente.
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Agora o que não posso deixar de ressalvar na atitude dos jovens é a falta de senso de oportunidade. Realizar uma ação dessa natureza no dia em que ocorriam em todo o país manifestações contra o fascismo foi impensado e insensato. Como se sabe, a estratégia da PM, que hoje cada vez mais se vincula ao bolsonarismo, é reprimir as manifestações contra Bolsonaro deslegitimando-as como atos de vandalismo.

Mesmo não se tratando de um ato de vandalismo, a queima do Borba Gato assim foi entendida por uma parcela da sociedade, e sendo realizada no dia dos protestos, houve com eles associação imediata, auxiliando o projeto do bolsonarismo de criar tumulto para reduzir o alcance social das manifestações contra o governo federal.
Devemos ter em mente que, hoje, o principal inimigo dos pobres, negros, indígenas, das mulheres, da comunidade LGBTQIA+, da sociedade brasileira em geral e da Constituição chama-se bolsonarismo. É tarefa de todos combater a eugenia e o genocídio do presente. Qualquer narrativa que colabore com o bolsonarismo é ruim para o povo brasileiro; inclusive, ações impensadas de grupos menores.
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*É Bacharel, Mestre e Doutor em Direito do Estado pela PUC/SP com Pós-Doutoramento em Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, em Ciência Política pelo Institut Catholique de Paris e em Direito Público pela Université Paris Nanterre; Professor de Direito Constitucional e Teoria Geral do Direito na graduação , mestrado e doutorado da PUC/SP, sócio do escritório "Serrano, Hideo e Medeiros Advogados