Arícia Fernandes e Allan BorgesDivulgação

Construir a cidade em que se vive é construir a si mesmo, todos os dias: no trajeto a pé até a escola das crianças; na fila do ônibus que leva ao trabalho; na volta, mais que à casa, ao lar. Os ingleses têm um ditado popular que diz: My home is my castle! (Minha casa é meu castelo!). Espaço indevassável da intimidade e asilo inviolável do indivíduo, não importa se o teto é de alvenaria ou de zinco, por cujos furos a lua salpica de estrelas o chão.
Todos querem um lugar para viver: uma mansão, um apê ou uma laje; não importa, todos têm direito à moradia, direito à cidade, direito a se (re) construir todos os dias e a se reconhecer como titular de direitos – e não de favores estatais. Uma coisa é certa: a exclusão geográfica, a insegurança fundiária, o preconceito social e a degradação socioambiental do espaço de moradia acabam despotencializando a capacidade de  ação coletiva das famílias vulneráveis em favor da qualidade do ambiente comum.
É neste contexto do direito ao acesso equitativo à rua asfaltada e ao passeio calçado com decência, aos equipamentos coletivos (escolas, creches, hospitais do SUS) e democráticos urbanos (a praça, o parque, a praia), ao trabalho digno e à mobilidade urbana menos desigual (faixas preferenciais para o transporte coletivo, proximidade da casa ao local de trabalho para todos, linhas de trens bem conservadas) que se insere também o direito à regularização do imóvel urbano popular: de quem habita a casa, mas não tem o título que o livre da insegurança de uma futura remoção ou que o permita se sentir efetivamente dono de seu castelo, seu lar.
A regularização fundiária – empregada, aqui como conceito amplo de autonomia - em sentido lato é um conjunto de medidas jurídicas, sociais, econômicas e culturais que empoderam o cidadão em relação ao seu local de pertencimento: seu bairro, seu conjunto habitacional, sua comunidade, seu teto, o lugar onde vive desde que nasceu. Regularidade em sentido estrito é receber o título jurídico – uma escritura, um termo de concessão de direito real de uso, um documento jurídico válido e não uma falsa promessa – que legitime sua posse ou reconheça sua propriedade; que impeça os outros de chamá-lo de “invasor”; que lhes confira a dignidade da segurança jurídica do morar. Ninguém invade o próprio castelo; simplesmente ocupa o pedaço de chão que transformará, muitas das vezes com as próprias mãos, em lar.
A tarefa da regularização fundiária, todavia, é deveras árdua: cheia de exigências burocráticas, entraves judiciais, dificuldades administrativas e cartoriais. O sistema parece concebido para não funcionar. Os programas de regularização fundiária urbana de interesse popular nunca atingem a totalidade dos moradores de uma dada Área de Especial Interesse Social – qualificação dos núcleos urbanos informais de baixa renda considerada indispensável, no âmbito do Município do Rio de Janeiro, para o processo –; deixam percentuais significativos de moradores pelo caminho. Falta suporte social e de forças políticas.
O novo marco regulatório da matéria – a Lei Federal 13.465/2017 (e alterações) – prometeu simplificar os procedimentos, mas a abrangência dos programas continua desprovida de alcance universal. Somente estratégias integrais de cunho universal, territorial e focal de superação em massa dos entraves aos milhares de imóveis localizados em conjuntos habitacionais, loteamentos e assentamentos irregulares da cidade têm uma perspectiva mais alvissareira de resolução desses casos de irregularidade fundiária intergeracional. Trata-se, portanto, do encontro “sujeito” e “objeto” para o verdadeiro direito à vida urbana.
Pode parecer, aos céticos, como dizia Ferdinand Lassale em relação à Constituição, que se trata apenas de uma “folha de papel”, mas um título de propriedade ou de segurança da posse, ao sujeito, é o direito de sobrevivência na cidade.

Arícia Fernandes Correia é procuradora da Cidade do Rio de Janeiro e professora da UERJ
Allan Borges é subsecretário de Habitação da SEINFRA.RJ e mestre pela FGV