Éramos Estela e eu e a nossa implicância com os que riscavam da alma a palavra felicidade. Jovens, ingênuas, talvez. Jogadoras displicentes de cartas no cassino em que não há perdedor. Era no que críamos.
Éramos Estela e eu e a nossa implicância com os que riscavam da alma a palavra felicidade. Jovens, ingênuas, talvez. Jogadoras displicentes de cartas no cassino em que não há perdedor. Era no que críamos.
Vitoriosas fomos até que o texto mudou em sua casa. Estela chorou a vida no velório dos pais. Era a volta de dias lindos de um recomeço para aquele casal com tantos estranhamentos. Os pais de Estela haviam decidido viver vidas diferentes, depois de amargores causados por outros na história deles e por, talvez, algum esgarçado do tempo. Voltaram e foram esculpir futuros em uma cidade serrana de águas termais.
As notícias que chegavam eram de um amor ressignificado. De serenatas, inclusive. Era ele um cantador quando se conheceram. O último telefonema, antes do fim, foi finalizado com risos de alegria. "Somos adolescentes novamente, bobos, apaixonados", foi o que disse o pai de Estela. E um riso assanhado de concordância, da mãe, se ouvia ao fundo. E, então, um caminhão desgovernado desgovernou aquela história.Na casa de tijolinho à vista, a dor era o móvel mais notado. Os dois caixões explicavam a partida dos dois amantes.
Estela tem uma irmã, rigorosa com a própria vida e inapta para os assuntos da alegria. Casou com o recato e com o tribunal imaginário das suas culpas. Culpou a si mesma por não ter ido com os pais ou por não ter impedido a viagem. Culpou a si mesma por ter nascido e por ter sido, talvez, a causa das primeiras desavenças entre os dois.O choro das duas diferiam. Estela é expansiva e compartilha a dor como costuras das emoções que a irmã prefere emudecer.O barulho dos passos carregando os corpos era pesado. Os paralelepípedos, gastos de histórias, recebiam mais essa procissão. E assim foi o dia do sepultamento.
Na volta, tomei Estela pelo braço e falei de assuntos outros que não a dor. Mostrei a avenida, da pequena cidade, que já começava a se vestir com os Ipês amarelos, inauguradores dos meses de agosto. Era assim todos os anos.
A irmã, que caminhava sozinha ao lado, nos roubou o instante com acusações nervosas de que estaríamos desrespeitando o dia. Os olhares entre as duas se cruzaram. Tão parecidas. E tão diferentes. Estela nunca espalhou brigas; a irmã,sim. Há também a inveja, separadora de possibilidades. E a avareza. A irmã de Estela já avisou que, por ser mais velha, será a inventariante. E já falou sobre algum dinheiro que o pai havia prometido a ela por algum trabalho e que teria o direito de escolher primeiro os objetos da casa que só ela, cuidadosa, saberia guardar. Estela desconsiderou a rapidez do apetite pelas coisas e se agarrou à saudade.
Chegamos na casa vazia das vidas. Estela chorou quando abraçou o travesseiro do quarto dos dois. A irmã apenas observou. Estela repetiu histórias, tantas vezes ditas sobre os seus dias felizes. E, então, começou a rir de alguma travessura dos instantes que não voltam. A irmã desautorizou o riso e se trancou no ódio de ter que conviver com o desajeito. Estela disse nada e convidou a paciência para se achegar.
Depois, saímos nós duas, a irmã negou o convite, e fomos comer em frente à praça em que os dois se conheceram. Depois do choro, Estela levantou uma taça de vida e fez um brinde à vida que viveram e à vida que prosseguirão vivendo. Eu disse sobre o recomeço e sobre partirem juntos em uma nova lua de mel.
O luar nos olhava na noite que começava. Estela quis saber se ela estava errada de, apesar de triste, estar feliz."Pensar nos dois me dá felicidade". Eu disse que jamais alguém pode ter vergonha de escolher a felicidade. Ela, então, abriu um sorriso e imaginou os pais também vendo a lua.Um som de algum carro, não muito longe, tocava uma canção de despedida. E, vagarosamente, o som do silêncio nos lembrava a paz.
Não decidimos os acontecimentos da vida, decidimos condenar ou absolver as nossas emoções diante deles.
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