Mayra Moriconi - Diretora jurídica e Compliance Officer da AEERJdivulgação

Restos, ruínas, destroços podem ser considerados sinônimos de algo que é deixado para trás, o final de tudo. No contexto das finanças públicas, os “Restos a Pagar” são despesas contraídas e não adimplidas pelo Poder Público no tempo e forma convencionados nos contratos, que podem referir-se à construção de escolas, saneamento, fornecimento de medicamentos, e uma
infinidade de outros objetos.
Tais dívidas são relativas a serviços já executados e materiais entregues em um ano, mas que não foram saldadas até 31 de dezembro e, portanto, deixadas para serem quitadas por último, em um momento futuro. A grande questão é saber quando.
Esse cenário e a indefinição do adimplemento dos Restos a Pagar trazem profundas consequências na situação econômico-financeira dos fornecedores do município e em seu fluxo de caixa, considerando que estes também têm seus compromissos para serem honrados, pagamentos de funcionários e de seus próprios fornecedores, que é exatamente o que permite, ao fim e ao cabo, a movimentação da Economia, com reflexos positivos para toda a população.
No entanto, o Rio de Janeiro, ao invés de conferir maior agilidade, comprometimento e segurança jurídica em seus contratos, com o propósito de cumpri-los no tempo e modo avençados - e, consequentemente, trazer mais investidores para a cidade – editou a Lei
Complementar 235/2021, que criou o Novo Regime Fiscal do Município, com disposições voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal. Por essa norma, impôs autoritariamente aos credores dos Restos a Pagar compreendidos no período entre 2017/2020 o parcelamento em dez anos do montante devido, desrespeitando as disposições contratuais originalmente ajustadas pelas partes.
Para além de afrontar as cláusulas dos contratos celebrados, a LC 235/2021 equivoca-se ao confundir os conceitos de recuperação fiscal com gestão fiscal: a possibilidade de parcelamento dos Restos a Pagar é autorizada pelas Leis Complementares Federais
159/2017 e 178/2021 apenas aos estados que aderirem ao Regime de Recuperação Fiscal por elas instituído, excluindo-se desta previsão os municípios. As disposições das legislações federais citadas somente abrangem os municípios no que tange à criação de planos de gestão fiscal, com a finalidade de compatibilizar as respectivas políticas fiscais com a da União.
Portanto, a LC 235/2021, travestindo-se de norma que busca corrigir desvios que afetam o equilíbrio das contas públicas cariocas, aprofunda incertezas e inseguranças. Ao compelir credores ao regime de parcelamento de dívidas por período demasiadamente longo - que ultrapassa, inclusive, a atual gestão administrativa - despreza a incidência de juros e atualização monetária dos débitos, desconsidera por completo a vontade dos credores e viola afrontosamente contratos.
Ainda, é eivada de inconstitucionalidades e ilegalidades, porque, sob o equivocado pretexto de tratar de assunto de interesse local, usurpa a competência da União para abordar matéria referente à excepcionalidade das normas gerais de responsabilidade fiscal, previstas na Lei Complementar 101/2000, de caráter nacional.

Até quando os órgãos de controle permitirão o descumprimento deliberado de contratos sob o pretexto de equilibrar contas públicas, aprofundando a insegurança jurídica? O suposto equilíbrio trazido pela LC 235/2021 é alento momentâneo, pois, invariavelmente, juros, correção monetária e os custos de prováveis judicializações irão, indubitavelmente, afetar o orçamento público e a população carioca.
 
Mayra Moriconi é diretora jurídica e Compliance Officer da AEERJ