Gabriel Chalita, colunista do DIADivulgação

Depois de muitos anos, voltei à cidade da minha infância.
No carro, eu revisitava as ruas que eram as mesmas de outros tempos. Olhava para os conversadores que ainda ocupavam as janelas das casas baixas, tão próximas do andar nas calçadas.Nenhum rosto me dizia nada. Talvez fossem netos ou bisnetos de antigos conhecidos. Talvez fossem moradores que se mudaram depois da minha partida.
A Igreja era a mesma com uma pintura que me pareceu diferente, não tenho tanta certeza.Passei pela escola onde Dona Ercília me apresentou o mundo encantado das palavras. Outras professoras e professores avisaram aos meus sonhos que eu poderia ir além.
Sou a filha caçula de uma família de mulheres. Meu pai morreu meses antes do meu nascimento. Meu avô também não resistiu ao tempo e nem chegou a ver o casamento da filha. Minha mãe e minha avó nos criaram valentemente.
No cemitério, não fiquei muito. Fui para abraçar os parentes de Ercília, a professora que comigo continuou trocando cartas, mesmo em tempos de comunicação mais rápida. E eu sempre respondi.Nos meus anos de trabalho em outros países, eu enviava postais. E, em todos os seus aniversários e natais, eu ligava.Era ela o elo com um tempo onde todos se foram.
Quando minha mãe morreu, todas nós nos mudamos.A carreira diplomática me levou a paisagens impressionantes de um mundo sempre surpreendente.Mas as minhas raízes estavam ali. Do alto do cemitério, eu avistei a estação de trem. E me lembrei do lago. Do lago que minha avó chamava de "o lago do amor". Foi ali que ela conheceu meu avô e foi ali que minha mãe conheceu o meu pai.
Havia uma lenda que explicava que uma mulher linda de alguma tribo indígena foi separada de seu amor por um maldoso pai que enviou o filho ao exterior para ter casamento melhor. A bela mulher deixou o futuro de lado e sentou as esperanças em uma árvore seca por viver o inverno. E chorou. Chorou dias e noites e nunca mais foi encontrada.Uma velha que sabia do que poucos sabiam explicou o lago, nascido daquela dor.
Não se sabe o que houve com o homem obrigado ao desamor.O lago, explicava a velha, surgiu sem que notassem nem que fizessem. Amanheceu em um dia. Nunca se garantiu nem se desmentiu a história. Sei que minha avó nos contava com emoção os encantos daquele canto da cidade. Dizia ainda que, em outros tempos, os que chegavam vindos de trem ficavam fascinados com "o lago do amor".
O lago, de fato, é belo. mas não mais belo que tantos outros que já conheci. Pelo menos era isso o que eu pensava quando estava distante.Quando olho novamente de perto o lago, tenho vontade de nunca mais partir.
Desisti de mais de um casamento. Já sou eu avó e, como a minha, gosto de contar histórias para os meus netos.O lago parece me mostrar as faces dos amores que se foram. Mais do que um. E do quanto eu sofri.Minhas lágrimas foram confidentes da minha solidão.
Olhando o lago, me vem uma saudade diferente, a de sofrer de amor. Como eu poderia imaginar isso. O que eu mais queria, naqueles tempos, era apagar o tempo em que eu acreditava na eternidade do amor. Hoje, tenho apenas a memória para brincar de viver comigo.Olho para as minhas mãos envelhecidas e, com algum cuidado, resolvo pelo descanso em uma árvore um pouco seca que se faz ver nas águas do lago. Vejo a minha imagem também. A menina que corria, hoje, apenas lembra.Não com tristeza. Foi daqui que saí para viver o mundo.
Um pássaro solta um cantar bonito, enquanto enfeita o lago. Penso em Ercília e em sua última carta, depois de nos falarmos no seu aniversário de 102 anos. Ela dizia que amanheceu o dia da escrita regando as rosas que enfeitavam o seu jardim. Morreu ela, segunda a filha, sentada em uma poltrona com um livro de poemas sobre o colo.
A vida é poesia. Nós é que desconhecemos.