Luciana BoiteuxDivulgação

O decreto (50.687/22) de choque de ordem na Praça São Salvador, editado recentemente pelo prefeito Eduardo Paes, apresenta uma série de vedações e restrições à apresentação de artistas de rua que atinge em cheio as atividades da Cultura popular em um dos mais conhecidos redutos da boemia carioca. Ele mirou nas apresentações populares na praça, conhecida pelas performances de artistas que geralmente seguram só no gogó, ou com amplificadores de pequeno porte, com hora marcada, até às 22 horas.
Com essa ação, contudo, o prefeito violou frontalmente dispositivos da chamada Lei do Artista de Rua (5.429/12), que representa importante passo na garantia do direito à ocupação dos espaços públicos, bem como do Decreto Rio 42.663/16, que a regulamenta. O decreto de Paes prevê multa no caso de eventos não permitidos e até mesmo a “interdição e apreensão de equipamentos e objetos”, contrariando o que dispõe a legislação municipal de proteção ao artista de rua.
Aliás, importante lembrar que essa lei chegou a ser vetada pelo mesmo Eduardo Paes, que se viu obrigado a voltar atrás após reunião em que se defrontou com a intensa mobilização dos trabalhadores da Cultura para a aprovação da lei e, de forma atípica, acabou orientando que sua base na Câmara derrubasse o próprio veto.
Destaca-se que a Lei do Artista de Rua não inovou no ordenamento jurídico, pois reproduz e resguarda o direito de expressão da atividade artística, independente de censura ou licença, previsto no Artigo 5º, IX da Constituição Federal. Esta lei, que completa dez anos esse ano, foi resultado da regulamentação do direito à atividade artística nos espaços públicos da cidade sem autorização prévia, mediante responsabilidades como livre circulação, limite de horário e gratuidade das apresentações.
Mas a Praça São Salvador é do povo e o prefeito terá novamente que voltar atrás na sua linha contrária à cultura popular, a uma porque seu decreto (de hierarquia inferior à lei) não se sustenta legalmente nem constitucionalmente, a duas porque contraria dispositivos da Lei Orgânica que garantem o direito à liberdade na criação e expressão artística pelo Município na área cultural ao estabelecer critérios que inviabilizam a apresentação de artistas de rua em um local específico (e contrariar a obrigação do município de resgatar, incentivar e promover manifestações culturais de caráter popular); a três porque ele terá que enfrentar a resistência democrática nas ruas, que não irá aceitar censura nem ordens autoritárias.
Dentre os artistas que lá performam, temos o Forró da Praça, que toca com pequena amplificação esse ritmo popular nordestino, com autorização e limite de 22h e que foi proibido de se apresentar, e a roda de choro Arruma o Coreto, que há 15 anos faz apresentações semanais ali.
Nas ameaças à democracia que vivenciamos no Brasil, o ataque à cultura popular na praça, reduto da manifestação democrática, insurgente e engajada de ocupação do espaço público protagonizada pela esquerda carioca, em ano eleitoral, não deve ser tratado como mera coincidência. Não podemos deixar que os retrocessos e a censura presentes na política nacional soprem por aqui. Cultura é resistência, cultura popular é patrimônio nacional. A Praça é do Povo!
Luciana Boiteux é professora da UFRJ e primeira suplente de vereadora pelo PSOL/RJ
Vivian Alves de Assis é advogada e doutoranda em Direito no PPGD/UFRJ