Dormi apenas uma noite com ele e engravidei uma vida. Mais de uma, talvez. A de Mirela, minha filha. E a minha, na esperança da eternidade do amor.
Ele se foi sem se sentir responsável pelos sentimentos que me dominavam. Ele se foi e deixou uma dor tão doída que os tempos de luto, em minha alma, impediram a entrega total a um amor tão lindo sendo gerado em mim.
Mas isso faz algum tempo. Mirela já tem 7 anos e brinca de fazer os meus dias menos áridos. Porque sou árida. Infelizmente. Rasgo o chão, não poucas vezes, para enterrar os nascedouros de alegria que sempre estão por perto. Saboto, talvez. Não sei.
O pai de Mirela eu conheci em uma festa perto de casa. Ele ofereceu tanto olhar, tanto dizer bonito, tanto toque com delicadeza que não consegui dizer não. Era uma noite com céu bonito. Lembro a música quando ele se aproximou. Lembro a timidez que me fez corar. Lembro a descrença de um homem tão lindo querer passar a vida comigo. Isso em mim. Nos sentimentos que brotaram em mim. Ele se foi, depois daquela única noite.
Três anos se passaram até que conheci João.Com João foi diferente, o medo era tão grande que demorei eternidades para dar permissão ao amor.Com João, tentei disfarçar a mentira e construir um alicerce que me impedisse novamente a queda. Falo da mentira porque aprendi, desde cedo, não sei com quem e nem por quê, a mentir.
Era menina ainda, na escola, quando, desprezada por quem eu olhava, menti ser adotada. A professora foi tão dócil, explicou que os filhos podem ser gerados no coração. Parabenizou meus pais por me darem uma família. E me tornou o centro das atenções.
Fui vaidosa para casa. Fui vaidosa até o dia em que a professora encontrou minha mãe e soube que eu havia mentido. Na escola, o desprezo. Em casa, a surra. Meu pai bateu em mim, explicando o horror da mentira. Eu apanhava e pensava o quanto ele mentia. Mentia ao ter outra mulher. Mentia ao inventar poder. Mentia ao enganar as pessoas para ganhar dinheiro. Tudo isso eu via.
Fui mentindo outras vezes. Sobre as boas notas na escola. Sobre os elogios que eu não recebia.Fui mentindo na adolescência, também. Na minha família disfuncional, não era autorizada a dizer as minhas dúvidas nem meus medos.
Minhas amigas já haviam ficado com meninos. Já haviam beijado. Eu, não. Mas dizia que sim.Dizia 'sim' até sobre o sexo. Tinha vergonha da minha virgindade. Queria não ser. Por ódio do meu pai. Tão moralista e tão errático na vida.
Os meus irmãos tinham um tratamento; eu, outro. Por ser mulher, não sei. Por ser tão parecida com a minha mãe, a mulher que ele agredia com textos indelicados. E ela se calava. Minha mãe comia o silêncio e rezava para os dias longos terminarem. Eu jurava nunca ser igual a ela. E pedia, não sem algum remorso, a morte do meu pai. Assim ela desabrocharia e poderia viver alguma vida.
Ainda sobre o pai de Mirela e sobre sua partida tão repentina, eu inventava motivos que justificassem. Houve um contratempo. Ele vai voltar. Ele vai voltar e seremos felizes para sempre. Ele me ama. Foi isso o que eu menti para mim, na única noite em que deitamos juntos. Plantei, em mim, os seus dizeres. E demorei anos para arrancar.
João não trouxe tantas promessas. Nos conhecemos em um pedido de informação. Disse a ele onde ficava uma casa e nos casamos meses depois.Briguei com meus pensamentos absurdos no dia do casamento. Enquanto a celebração ia ditando o meu futuro, imaginava o pai de Mirela entrando esbaforido na Igreja e me convidando a viver o amor com ele.Não que eu não amasse João. Talvez o desamor fosse comigo mesmo. Talvez fosse eu desautorizando a felicidade.
A beleza do pai de Mirela eu já nem mais sabia se era verdade. Uma única noite. Eu disse tanto do que ele disse que já não sabia mais o que era dele e o que era meu. O fato é que estou grávida. Mirela vai ter um irmão. João e eu teremos um filho. Sobre meus pais, permanecem juntos. Minha mãe fala pouco e já não sei o que falam eles, quando não estamos.
Meus irmãos também saíram de casa. Minha mãe costura roupas, enquanto descostura agasalhos que a vida poderia oferecer, se ela tivesse coragem. João a trata como mãe, talvez mais do que eu que culpe sua fraqueza. E, sobre isso, eu não estou mentindo. Como eu desejava, nas minhas infâncias sofridas, que ela batesse nele, que ela desse um basta, que ela chamasse a polícia.
O que tento fazer, hoje, é policiar os meus dizeres para viver a verdade que a vida me ofereceu. Quero fazer nascer o que está crescendo em mim. Há uma nova gravidez. Uma vida. Mais de uma, talvez. A do meu filho. E a minha, com o amanhecer da preciosa verdade que demorou tanto para eu compreender.
Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor.