Rio - Em discurso emocionado e recheado de expressões populares, o ex-presidente Lula incendiou um público de mais de 60 mil pessoas, segundo os organizadores, na noite desta segunda-feira, na Lapa, durante ato "Cultura a Favor da Democracia", que contou com a participação de grandes astros da MPB, como Chico Buarque e Beth Carvalho. Rouco e bastante suado, o líder petista iniciou o discurso fazendo piada de sua própria condição física atual.
GALERIA: Lula participa de ato contra impeachment
"Vocês percebem que minha voz está desaparecendo. Quando eu levantava às 4 da manhã para fazer assembleia em porta de fábrica, às vezes eu era obrigado a tomar um conhaquezinho para a garganta esquentar e nunca tive problema na garganta. Agora que estou tomando água por recomendação médica, a minha garganta está falhando toda hora que nem carro velho", brincou.
Em seguida, Lula lembrou da reação que teve em 31 de março de 1964, quando tinha 18 anos, e os militares depuseram o presidente João Goulart, que prometera fazer as reformas de base tão necessárias para o país, e que após 52 anos ainda não saíram do papel. O ex-presidente admitiu que, à época, também acreditou nas promessas dos militares, que acabaram dando um duro golpe na democracia brasileira e levaram o país a um dos períodos mais obscuros de sua história.
"Naquele tempo a gente trabalhava em hora corrida. Das seis às duas, das duas às dez, e das dez às seis da manhã. No dia em que houve o golpe, eu estava de duas às dez. E a gente tinha só meia hora de janta. A gente comia em pé e eu lembro das pessoas mais velhas, de 40 anos, que pareciam muito velhos, de 50 anos, que pareciam hiper velhos, defendendo o golpe militar. Lembro que diziam que os militares iriam consertar o Brasil e não permitiriam que os comunistas entrassem no Brasil. E que iriam acabar com a corrupção. E muita gente acreditou. Até minha mãe, pobre coitada, mandou a aliança de casamento dela para a campanha "ouro para o bem do Brasil", que havia para salvar o país. Eu, que não tinha consciência política, em alguns momentos achei que o Brasil fosse mesmo melhorar. Mas demorou 23 anos para a gente voltar a ter democracia neste país", lamentou.
O ex-presidente brincou novamente ao lembrar que seu primeiro voto para presidente, devido à ditadura, acabou sendo nele mesmo, 25 anos mais tarde, em 1989. Lula lembrou das muitas eleições que perdeu e alfinetou, pela primeira vez na noite, a oposição, que, segundo ele, não gosta de democracia.
"Nossa democracia é muito nova. São apenas 28 anos. E eu jamais imaginei a minha geração, que viu o golpe, e a dessa molecada, que foi às ruas derrubar o regime, vendo golpista tentando tirar uma presidente eleita pelo voto popular. E quem quer tirar a Dilma? Temer, Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves, Padilha e uma pessoa que vocês conhecem bem, Wellington Moreira Franco. Essa gente deveria olhar a minha vida e perceber que perdi eleições em 1982 para governador de São Paulo e fiquei quieto. Perdi em 1989, roubado com o apoio da Globo, e fiquei quieto. Perdi em 1994 na maior aliança de direita já feita neste país e fiquei quieto. Perdi em 1998 e fiquei quieto. Como diria o Velho Brizola, voltei para casa lamber as minhas feridas e esperar para ganhar. E nunca vocês viram eu reclamar que o mandato de alguém é ilegal. Mas bastou a gente ganhar em 2002, 2006, 2010 e 2014 que eles já mostraram a faceta de uma parte da elite que não gosta de democracia. Que a democracia deles é apenas quando eles estão governando, para 33% da população", criticou.
Lula também criticou Dilma Rousseff pela guinada à direita em seu segundo mandato. E disse que vai voltar ao governo, como ministro, para ajudar mais uma vez a recuperar o país. No fim, sobrou crtítica também para o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
"A companheira Dilma aprendeu uma lição. Ela fez uma proposta de ajuste que nenhum companheiro dela gostou. Fez para atender o mercado. E o mercado dela não é o banqueiro, é o povo trabalhador, o que vai comprar carne, que vai ao mercado. Ela sabe que há um ano e quatro meses ela tomou posse e eles não dão trégua para ela. É como uma casa onde a mãe bota a comida e os filhos chegam e jogam tudo fora. Eles não deixam a Dilma governar. Eles não querem que a Dilma governe. Eles não querem a democracia. Aprendam com o Lula. Saibam esperar. O Lula esperou doze anos para mostrar que um torneiro mecânico pode governar este país com mais competência que alguns que têm diploma universitário", disse Lula.
Em seguida, voltou a alfinetar a elite que, segundo ele, não gosta de pobre. E novamente o ex-presidente FHC.
"A elite brasileira nunca se preocupou que o pobre estudasse. Para ela, pobre tinha que ser faxineiro, pedreiro, e eles [os filhos da elite] que nasceram para ser engenheiros. Mas nós mudamos essa lógica com o Prouni, colocando pobre da periferia numa universidade. E estes meninos estão provando que não tem diferença entre rico e pobre. E eu quero colocar esses pobres no mesmo banco que eles para ver quem é mais inteligente. A Dilma e eu fizemos mais em 12 anos do que eles em cem anos. Colocamos 3,8 milhões de jovens na universidade. Eles colocaram 3,5 milhões em 100 anos. Isso incomoda. Eles se revoltam com um peão analfabeto que tem mais títulos de Doutor Honoris Causa do que o sociólogo que presidiu este país", alfinetou.
Lula também lembrou dos investimentos feitos no Rio de Janeiro. E voltou a citar o que considera preconceito da elite brasileira.
"Sei que ainda falta muito. Mas duvido que um presidente tenha visitado as favelas deste Rio de Janeiro como eu visitei. Quando a gente fez os teleféricos, fomos criticados. "Teleférico tem que ter em Miami", diziam. Mas pobre tem que ter o melhor. Pobre gosta de comer bem, de ter carro. Pobre não quer comer pé de frango, mas peito de frango. Não quer comer músculo, mas picanha, alcatra, filet. Não sei quem inventou que pobre gosta de xêpa. Aqui para eles, ó. Aqui! (fazendo o tradicional gesto de "dar uma banana"). Esse negócio de achar que a gente gosta das coisas ruins é coisa deles, que gostam de pagar pouco para a gente não ter as mesmas coisas que eles", disse Lula.
O ex-presidente ironizou as "falsas madames" que, em sua avaliação, se colocam contra o governo por leis como as que beneficiam, por exemplo, as empregadas domésticas.
"Elas detestam a gente por causa da lei das domésticas. Fico imaginando determinadas falsas madames que botam um perfume na sexta-feira para ir jantar, mas chega na segunda-feira e a empregada vai trabalhar com o mesmo perfume, comprado à prestação (risos). Eles [ricos] deveriam agradecer, pois quanto mais o pobre subir, mais a classe média sobe, mais o rico sobe. Mas eles não gostam de dividir o espaço público com povo. A praça é só deles. Nosso é o piscinão de Ramos. Copacabana, Ipanema é só deles. Theatro Municipal é só deles. Cinema é só deles. Restaurante chique é só deles. Eles acham que a gente gosta de comer por quilo e em marmitex. E de restaurante popular. A gente gosta do bom e do melhor, por isso precisamos fazer as pessoas humildes evoluírem", disse Lula.
Apesar do discurso contundente, Lula garantiu não incitar a luta de classes. E lembrou que todos os partidos, inclusive os de direita, tiveram voz em seu governo.
"Mas eu fico imaginando a raiva que eles têm quando vão para Bariloche e tem um pobre indo também (risos). Quando vão visitar o Delta do Parnaíba e o avião tem 50 pessoas que não sabem nem sentar direito. Ninguém governou o Brasil "para todos" mais do que eu. Duvido que tenha um empresário, um banqueiro, um fazendeiro, um prefeito do DEM que diga: "o Lula me discriminou!". Duvido, porque tratei todo mundo com a decência que eu quero ser tratado. E é assim que devemos nos portar, tratar os outros do jeito que a gente quer ser tratado", disse.
O ex-presidente voltou a criticar Dilma e revelou que só aceitou o convite para voltar ao governo mediante mudança na política econômica.
"O pobre não é problema, é a solução desse país. Olha, dê um bilhão para o [empresário Jorge] Gerdau, que ele vai investir ao longo prazo. Vai comprar título do tesouro, ganhar 14,5% e depois vai investir. Vai demorar anos para gerar empregos. Agora, dê cem reais para uma mulher pobre que meia hora depois ela vai no mercado comprar pão, comprar leite, comprar feijão, comprar carne, comprar uma meia, comprar um sapatinho para criança... Ela vai transformar aquele dinheiro numa coisa que vai rodar a roda gigante da economia e esse país vai poder voltar a ser feliz. Eu acredito nisso como eu acredito em Deus", comparou.
Lula também mostrou preocupação com a intolerância das manifestações contra o governo. E defendeu até opositores como Aécio Neves e Geraldo Alckmin, diferentemente do que fez com Jair Bolsonaro.
"A luta pela democracia é uma coisa importante. Mas do lado deles você percebe que eles negam a política. Lá em São Paulo não deixaram o [Geraldo] Alckmin [governador do Estado] falar. Não deixaram nem o Aécio [Neves, e senador pelo PSDB-MG] falar. Sabe quem é que fala por eles? O deputado [Jair] Bolsonaro. Foi assim que surgiu o nazismo na Alemanha quando Hitler mandou perseguir os socialistas e os comunistas. Foi assim que nasceu o fascismo na Itália. Nós queremos dizer em alto e bom som: nós aprendemos a gostar da democracia pois somente a democracia permite como um cara como eu chegue à presidência. Que uma Dilma, chegue à presidência. Somente a democracia permite uma rotação do poder. Qualquer um pode competir. Quando fui competir em 89, achei que o PT não tinha lançado um candidato. Tinha me jogado aos leões. Tinha Brizola, tinha Ulisses Guimarães, Aureliano Chaves, Mário Covas, Afif, tinha até Enéas. Achei que eu era o azarão. E de repente fui para o segundo turno. E se a Globo não dá uma mãozinha para o Collor eu teria sido presidente em 1989. Mas eu não reclamei porque foi "bão" pra mim ter esperado doze anos. Foi um aprendizado extraordinário. Fiz as caravanas da cidadania. Percorri quase 92 mil quilômetros de barco, de trem, de ônibus... Eu fui conhecer as entranhas do nosso país. E quando eu ganhei as eleições, vocês "tão" lembrados, eu coloquei todos os meus ministros dentro de um avião e levei para conhecer os lugares mais pobres deste país. Porque se não os ministros ficam olhando Brasília, ficam olhando palácio "não sei de quem". Ficam admirando os palacetes e esquecem que esse país não é feito de palacetes. É feito de palafitas, é feito de favelas, é feito de casas humildes, e que nós começamos a mudar com o 'Minha Casa Minha Vida'. Por isso, eu quero aqui dizer que falta muita coisa para a democracia", disse Lula.
O ex-presidente citou as conquistas sociais, uma das marcas de seu governo, mas disse que ainda há muito o que fazer. E que a sociedade não pode admitir uma volta ao passado. Sobretudo os negros e pobres da periferia.
"Os negros apenas deram o primeiro passo para conquistar igualdade. Ainda falta gerente de banco negro, ainda falta dentista negro, ainda falta médico negro. Ainda falta muita coisa. Onde tem mais negros e jovem é no cemitério e na cadeia. Porque eles são vítimas de uma polícia com orientação branca", disparou.
Ao falar sobre os direitos da mulher, Lula lembrou da dificuldade que o governo encontrou, perante à elite, para aprovar o Plano Nacional de Educação. E disse que o Brasil deve reavaliar a questão do aborto.
"A mulher tem que ter liberdade sobre o seu corpo. Cada um tem direito de cuidar do corpo do jeito que quiser. Eu vi agora a guerra para aprovar o plano que falava em educação sexual em nossas escolas. Eles foram contra. Mas o que eles querem é a educação da novela das oito, das novelas das nove onde as crianças aprendem o pior tipo de coisa, em vez de uma professora em sala de aula ensinando para a criança o que é o seu corpo e como utilizá-lo corretamente. Os filhos do ricos têm isso. Têm até professores particulares. Quando ficam com probleminhas, tem até psicólogo, analista. E filho de pobre, o que tem? Filho de pobre tem que aprender na rua, é isso que eles querem. Nós temos que ter uma orientação correta. Eu sou católico, sou cristão, e sou até conservador. De vez em quando eles perguntavam assim pra mim: Lula, você é contra ou a favor do aborto? Eu respondia: Eu, marido de dona Marisa, pai de cinco filhos, sou contra o aborto, mas como Presidente da República eu vou trata-ló como questão de saúde pública".
Já no final de seu discurso, Lula disse que é preciso democratizar o acesso aos meios de comunicação do país, outra promessa petista que nunca saiu do papel.
Eu sei que ainda falta muito. Quando eu estava no governo, tentamos democratizar um pouco da cultura e levar um pouquinho de dinheiro para o Norte, para o Nordeste. "Cês" tem que ver como o pessoal do Sudeste ficava nervoso. Não adianta a gente imaginar que este país vai ser democrático se você tem uma regulamentação da mídia de 1962, quando a gente não tinha essa loucura que é a internet hoje. Mas eles (os empresários) não querem mudar. Eles são modernos para tudo, mas quando fala que é para regulamentar a mídia eles não querem. Eu não quero a regulamentação tipo China ou tipo Cuba, não. Eu quero uma regulamentação tipo Inglaterra, tipo Estados Unidos, tipo Alemanha. Eu quero uma regulamentação que permita que a gente tenha direito e que a gente possa responder à desfaçatez da Época, se defender das mentiras da Veja, das mentiras da IstoÉ, das mentiras do Jornal Nacional, das mentiras todas que eles contam. Eu aguento muita bordoada, mas não é justo eles fazerem com a Dilma o que eles estão fazendo. Quando a gente saí na rua para defender o mandato da Dilma é importante a gente ter clareza que a gente não está defendendo o direito de uma mulher ser Presidente da República. A gente tá defendendo a honra das mulheres brasileiras que sempre foram tratadas como objeto de cama e mesa neste país", discursou.
No fim, o ex-presidente garantiu que passará os últimos anos de sua vida defendendo a democracia. E chamou de golpe o que está sendo articulado pela oposição no Congresso, em Brasília.
"Eu aprendi a conquistar espaço e aprendi o valor da democracia e da liberdade. Eu quero avisar pra eles, que estão tentando dar um golpe na companheira Dilma, e para os meios de comunicação que fazem de tudo, menos dar informação correta paro nosso povo, que eu não sei quantos anos tenho pela frente. Depois dos setenta anos qualquer seis meses a mais de vida a gente dá graças a Deus. Mas se eu tiver [apenas mais] um dia, eles podem saber que esse dia será dedicado vinte e quatro horas em defesa da liberdade, da democracia e da cidadania deste país. E saibam de uma coisa: a imprensa pode me bater. Outro dia eu fui à Avenida Paulista e me pediram para eu botar um colete (à prova de balas). Eu falei: não vou colocar colete nenhum, não. Nós, nordestinos temos o corpo fechado. Não venham com bobagem para cima de mim, não. Eu não tenho essa preocupação. No dia que tiver medo, não saio de casa. E vou dizer para vocês uma coisa: se eles quiseram nos derrotar, vão ter que aprender que nós não saímos nas ruas nos dias de domingo. Nós saímos às ruas às segundas, terças, quartas, quintas, sextas, aos sábados... Nós saímos às ruas o ano inteiro. Um abraço e até a vitória, se Deus quiser!",
Colaborou o estagiário Rafael Nascimento