Rio - Há um ano, eles transformaram um curral de gado em Paty do Alferes, no Sul Fluminense, em campo de futebol. Resultado: da manjedoura nasceram os campeões, no dia 19, da Série C (quarta divisão) do Campeonato Carioca deste ano, e que agora estão aptos à disputar, em 2018, a Série B2, a terceira divisão. Trata-se do Pérolas Negras, formado por jovens haitianos, o primeiro time profissional de refugiados do Brasil. A mais nova sensação do futebol estadual impressiona pela força de vontade e pretende dar chances também a jogadores de outros países com graves problemas sociais, como Síria, Jordânia, Iraque e Venezuela.
Com faixa etária entre 17 e 20 anos, os jogadores, que recebem em média R$ 1 mil por mês, foram selecionados em peneiras a partir de 2011 pelo projeto social Academia Pérolas Negras, da ONG Viva Rio. As escolhas foram feitas ainda entre as ruínas do terremoto que matou 200 mil no Haiti. A equipe Sub-20 do Pérolas também foi campeã da competição, invicta.
"Superando traumas e a saudade dos parentes e amigos, o elenco demonstrou seu valor com a bola nos pés, transformando dor em gols", afirmou o técnico Rafael Novaes. Na quarta-feira ele se reuniu com os atleta no antigo hotel-fazenda Quindins, fundado em 1828, para avaliar a campanha.
O imóvel, onde cocheiras de cavalos agora servem para guardar materiais esportivos, foi arrendado por dez anos pelo Viva Rio, com patrocínio de empresa de alimentação e apoios locais. Aos poucos, um centro de treinamento, com sala de aula de português, de reabilitação, fisioterapia, e departamento médico, vai surgindo.
Na pacata cidade de 25 mil habitantes, a 112 km do Rio, os "pérolas negras", como são conhecidos, mexem com a rotina do município, onde são matriculados no Ensino Fundamental e tratados como heróis. "Paty deixou de ser conhecida só como a maior produtora de tomates do estado. Agora, também é a cidade dos pérolas negras", destaca, orgulhoso, o fisioterapeuta Rafael Guiducci,
Em tom de brincadeira, ele dedura que alguns craques, como o zagueiro Badio, de 17 anos, e o lateral direito Elison Ducé, de 19, já têm até paqueras na região. Tímidos, eles desconversam. "Fôfôca (carregando no sotaque) 'brôther'", resume, bem-humorado característica, aliás, do grupo , o atacante Davidson, de 19 anos.
Prêmio de melhor defesa
Além da taça e campeões, eles levaram o prêmio de melhor defesa do campeonato, sofrendo só 9 gols, e o troféu fair play, da Federação de Futebol do Rio (Ferj), por terem somado 29 cartões amarelos e dois vermelhos nas 16 partidas. As expulsões foram por reclamação e suposto retardamento de jogada. Sem violência. "E é a primeira competição profissional deles", elogia Novaes, que em 2013 foi destaque em matéria do DIA, intitulada 'O Caçador de Pérolas'.
Humildade e perseverança
A saga dos Pérolas começou com uma incerteza. Na primeira partida perderam de 2 a 1 para o 7 de Abril, de Angra. "Mais uma vez, porém, aprenderam, humildemente, a erguer a cabeça diante das adversidades e não desanimaram. O troféu conquistado repercutiu até nos canais esportivos do exterior", comenta Novaes.
As famílias não se cansam se felicitá-los pelas redes sociais. Usam espaço de informática do hotel, reaberto para abrigar os atletas, que ocupam parte dos 36 cômodos. "Estão em festa na Favela Tokyo, onde eu morava, no Haiti", emociona-se Elison Ducé, revendo os dois chapéus seguidos que aplicou num jogo. "Luto por um sonho, que é jogar num grande clube e dar melhores condições à minha família no Haiti", afirma Elison, que treinou no Botafogo e saiu devido à pouca idade na época.
A formação do time costuma ser mesclada com jogadores brasileiros, como o centroavante Rafael Paty, o "paizão". Quem não levou jeito com a bola, encontrou outras atividades, como Solon, que virou roupeiro, e o treinador de goleiros, Paskal.