Na casa de dona Maria de Lourdes, de 71 anos, no Coletivo Santa Alice, em Seropédica, a ligação de água e esgoto vão juntas para o mesmo lugar: uma fossa no terreno. "Onde deságua, não sei. Acho que a terra chupa tudo", diz. A realidade é comum à grande parte dos moradores de 40 áreas rurais de 15 cidades da Bacia do Rio Guandu, que, esquecidos pelo poder público, buscam por conta própria maneiras para descartar o esgoto e obter água para sobreviver. "Em todas as casas daqui é assim", diz dona Maria, que mostra um buraco no terreno com canos encobertos pelo mato.
A reportagem de O DIA percorreu alguns desses locais e começa hoje a série 'Esquecidos do Guandu' contando a dura realidade dos moradores de Santa Alice. Sem solução adequada de saneamento nas áreas rurais, onde estão a nascente e os afluentes do Guandu, os poluentes chegam in natura às águas do rio, que abastece nove milhões de cidadãos fluminenses.
O projeto Saneamento Rural, do Comitê Guandu-RJ, estima que 70 mil pessoas vivam nessas regiões, que descartam na Bacia Hidrográfica do Guandu aproximadamente quatro piscinas olímpicas de esgoto por dia. Técnicos do colegiado estão percorrendo essas áreas para elaborar um diagnóstico e plano de obras para ajudar as prefeituras a minorar o problema. A previsão é que os relatórios do projeto sejam apresentados aos municípios em fevereiro de 2021.
"As zonas rurais, que são formadoras de rios, foram esquecidas nos projetos de saneamento. Se levarmos tratamento de esgoto para essas áreas, vamos melhorar de forma relevante a qualidade da água que chega ao Guandu", explica a engenheira ambiental Daiana Gelelete, especialista em recursos hídricos da Agevap, o braço técnico do Comitê Guandu-RJ.
Dona Maria de Lourdes e seu marido bebem água de poço escavado no terreno. "Sempre foi assim. Agora, a água está escasseando. Temos que comprar carros-pipa toda semana", queixa-se dona Maria.
Segundo Jorge Félix de Oliveira, de 65 anos, a água do poço é boa. Quanto à fossa para o esgoto, ele conta que fica em um ponto mais afastado do terreno: "É um buraco no chão. Depois, vai tudo para o córrego que fica ali na frente. Deve dar no Guandu".
O córrego fica em frente à barraca de Rosa Ferreira, de 50 anos. Para ela, a proximidade do curso d'água onde é despejado o esgoto afasta os clientes: "Esses dias, apareceu um rato grande aqui. Atrapalha a gente. Podem pensar que não temos higiene, mas é o esgoto. A culpa não é nossa".
Filho de Rosa, Adriano Araújo, de 28 anos, se queixa da dificuldade para estudar. "Isso porque os ônibus não passam e não temos internet. Quando chove, ficamos ilhados. Temos pouca iluminação e a coleta de lixo é deficitária. Somos obrigado a queimar os detritos. Sei que é errado, mas não temos alternativa", acrescenta.
Contraste com as indústrias
Mesmo sem saneamento, o Coletivo Santa Alice abriga grandes indústrias. "Dizem que uma delas furou 12 poços. Nossa água está falhando", disse um morador que não quis se identificar.
Já a Cedae disse que possui um projeto para o abastecimento do Coletivo Santa Alice, que será revisto devido ao crescimento populacional da região. A companhia disse, ainda, que irá ampliar os investimentos em saneamento com o modelo de concessão, que está em elaboração. Segundo a Cedae, estão previstos investimentos da ordem de R$ 32 bilhões.
Qual é o objetivo do projeto?
Daiana Gelelete - Estamos na fase de visitas e diagnóstico. Depois, vamos elaborar planos de ação para a realização de obras de esgotamento sanitário e entregá-los às prefeituras. Num terceiro passo, vamos disponibilizar recursos próprios do Comitê.
Qual é a realidade das regiões?
Quando as populações são ribeirinhas, ligam o esgoto direto nos cursos hídricos. Quando não, a ligação é feita na rede de águas pluviais das cidades, que também vão desembocar nos rios.