Voluntários da Frente de Mobilização da Maré distribuem alimentos para os moradores - PATRICK MENDES/Divulgação
Voluntários da Frente de Mobilização da Maré distribuem alimentos para os moradoresPATRICK MENDES/Divulgação
Por Yuri Eiras e Luana Benedito*
Rio - Um coronavírus com nariz pontudo e olhar de vilão encara quem passa pela Baixa do Sapateiro, uma das 16 favelas que formam o Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio. No graffiti da parede, os números de contaminados no Brasil e no estado são atualizados diariamente. Tem sido assim desde março, quando, ao primeiro sinal da chegada da covid-19 no país, mais de 100 moradores da região se organizaram na Frente de Mobilização, coletivo que tem espalhado pelas ruas as notícias sobre a pandemia de covid-19. A intenção é orientar aqueles que, por falta de tempo ou dinheiro, não têm acesso a sites ou canais pagos de notícias.

"Pensamos em um plano de comunicação que atingisse a favela, já que não é todo mundo que têm acesso à Internet, televisão ou mesmo energia elétrica. Pensamos em comunicar por graffiti, carro de som, faixas, cartazes. Pensamos formato, linguagem e necessidade. O público-alvo somos nós mesmos", explica Gizele Martins, comunicadora comunitária da Maré e uma das líderes da Frente de Mobilização. É dela a voz firme que anuncia no carro de som: "Atenção, Maré: o coronavírus não é uma gripe. Não é tempo de fazer churrasco ou festinhas".
 
Coronavírus no muro da Baixa do Sapateiro - DIVULGAÇÃO/FRENTE DE MOBILIZAÇÃO DA MARÉ
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A Maré se tornou, em maio, a favela do Rio com mais óbitos confirmados por covid-19. São 67 mortes e 253 casos, segundo dados da Prefeitura. O número pode ser maior, já que o Rio é uma das capitais que menos testa. "O município não montou pólos, principalmente nas comunidades, para o atendimento sintomático. Os pacientes que têm sintomas de gripe se misturam na sala de emergência, provocando uma contaminação cruzada, o que certamente vai aumentar muito a taxa de letalidade da doença. As pessoas que têm outras doenças estão pegando covid-19 nas unidades de atenção primária", explica o médico Daniel Soranz, infectologista da Fiocruz e ex-secretário de Saúde do Rio.
O tamanho da população local é a chave para entender o porquê da propagação do vírus estar maior na Maré do que em outras favelas. São cinco quilômetros de casas aglutinadas e cerca de 140 mil habitantes - quase dois Maracanãs lotados. Mais gente que a Rocinha (100 mil) e o Complexo do Alemão (70 mil), de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Entretanto, na relação de óbitos por número de habitantes, a Maré passa longe de ser o epicentro. A Cidade de Deus, com 38 mil habitantes, soma 33 óbitos, uma taxa de letalidade maior.
Coletivos também fez distribuição de gás - PATRICK MENDES
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Vizinha da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), principal instituição de estudos de infectologia e saúde pública do Brasil, a favela cresceu à margem da Baía de Guanabara e se tornou um gigante com cor de tijolos. Em 1994, ganhou status de bairro oficial, mas o desenvolvimento local não progrediu. Nas moradias mais próximas ao manguezal da Baía, não há saneamento básico. Muita gente, pouco espaço e nenhuma ação urbana do poder público. Cenário ideal para um vírus se alastrar feito fogo em gasolina.

"Infelizmente, o isolamento de quem fica doente na favela é diferente; a dinâmica da casa é muito diferente. Aqui você tem famílias de 10 pessoas morando em dois cômodos", explica Flávia Cândido, 38 anos, nascida na Maré e moradora do Conjunto Esperança, próximo da Avenida Brasil. Para Flávia, sem o investimento na comunicação, o estrago poderia ser pior. "O trabalho da Frente de Mobilização da Maré é muito importante. Quando o carro de som passa e fala que a covid-19 mata, que agora o vírus atinge o vizinho, o amigo, o parente, as pessoas começam a entender melhor".
Coletivo pintou em um muro da comunidade os números da pandemia no Brasil - PATRICK MENDES
O carro de som, os cartazes e as faixas são uma tentativa de orientar a população da Maré em meio às vozes dissonantes das autoridades fluminenses. No dia 1º de junho, o prefeito Marcelo Crivella anunciou a reabertura gradual do comércio. A Justiça barrou dias depois, mas o município, em liminar, conseguiu reverter a decisão. O governador Wilson Witzel liberou parte do comércio, inclusive os shoppings, em horário alternativo. No âmbito federal, os discursos do presidente Jair Bolsonaro confrontam os dos especialistas. O país está sem ministro da Saúde há um mês. A impressão de Diego Reis, 23, morador do Parque Rubens Vaz, é de que, por fruto dessa confusão, "as coisas estão muito normalizadas". "Há muito comércio em funcionamento, há bastante trânsito de pessoas aqui nas ruas, ou seja, as pessoas não estão respeitando o isolamento social".

Na Maré, ‘quem tem água, divide com quem não tem’
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Dados do IBGE do ano passado indicam que, dos 2,3 milhões de casas na cidade do Rio, 453 mil, ou 19%, estão nas favelas. A ocupação é crescente. Na Maré, deu-se na década de 1960, quando moradores de morros da Zona Sul foram despejados e realocados na região. As experiências de embate com o poder público daquela época contribuíram para que os habitantes construíssem uma rede de auto-organização mais vigorosa do que centenas de outras favelas cariocas, ainda dependentes do sistema de associações de moradores. "Hoje, concretamente, nós temos uma geração mareense que conseguiu adentrar à graduação, à universidade pública. Hoje, a Maré já colhe seus frutos, o que é não é realidade ainda em outras favelas. Temos uma geração de mestres, doutores, pós-doutores e são esses mesmos moradores que combatem a pandemia", explica a deputada estadual Renata Souza (PSOL), criada na Maré e fruto dos projetos educacionais locais.
A Frente de Mobilização, criada em 19 de março, é um aglomerado de 13 coletivos que previam um desastre caso o vírus chegasse nas favelas cariocas. Por isso, além da divulgação de informações, o grupo investiu na distribuição de cestas básicas, água e itens de higiene. "Quando a notícia da recomendação de distanciamento social saiu na tevê, a gente começou a perceber que a linguagem utilizada não atingia a realidade dos moradores. Uma das principais recomendações de conter a transmissão é lavar as mãos, e a realidade da favela é que muitos não têm abastecimento de água. Pensamos em como, na nossa comunicação, abranger essa necessidade", conta Gizele Martins. "Pautamos também a solidariedade entre nós. Quem tem água divide com quem não tem; quem não tem, pede".
Frente de Mobilização da Maré distribui alimentos aos moradores - PATRICK MENDES
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Tatiane Lima e seu filho de 13 anos, moradores da Nova Holanda, receberam cestas básicas dos coletivos. Ela é dona de uma lanchonete inaugurada durante a pandemia, o que prejudicou a renda familiar. “O movimento do comércio não é bom, mas as ONGs tem abençoado muito nossa vida com cestas básicas. Estão fazendo um trabalho incrível. Ajuda para o grosso do dia a dia: o arroz, o feijão”, diz Tati.
As ações de comunicação realizadas pela Frente de Mobilização foram replicadas, espontaneamente, em outras favelas do Rio. No Jardim Maravilha, em Guaratiba, um caro de som tem alertado a população sobre o alto índice de contaminação na Zona Oeste carioca. Cartazes também foram espalhados nos comércios. No Complexo do Alemão, o Coletivo Papo Reto brincou com as fake news relacionadas à cura da covid-19 por soluções naturais, como a de que o enxofre encontrado no alho cru espantaria o vírus. "Atenção! Descobriram a planta que vai acabar com o coronavírus: 'planta' a bunda no sofá e fica em casa!"
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*Este artigo faz parte da série de publicações resultado da Bolsa de Jornalismo de Soluções 2020, executada com apoio da Fundación Gabo, Solutions Journalism Network e Tinker Foundation.