Por Alexandre Medeiros
Se hoje temos a invasão criminosa de terreiros de umbanda e candomblé, sobretudo por milícias evangélicas, o que dirá entre os anos de 1889 e 1945, quando a legislação brasileira legitimava a intolerância religiosa? Era a própria polícia que invadia os terreiros, amparada pelo Código Penal de 1890, que definia como crime a “prática do espiritismo, da magia e seus sortilégios”.
As primeiras gerações do samba carioca são testemunhas de que não era fácil cultivar a fé nos terreiros no início do século passado. Perseguidos pela polícia pelo "crime" de vadiagem, os sambistas iam buscar refúgio com pais e mães-de-santo. Alguns terreiros, por conta do empenho de políticos em busca de votos, conseguiam a legalização. Em seu antológico livro 'As Escolas de Samba do Rio de Janeiro', Sérgio Cabral (o pai, por favor), conta como João da Baiana narrou uma batida em terreiro. O policial adentra o recinto e anuncia: "Recebemos a denúncia de que aqui se canta samba". Não era mole, não.
Junto com as prisões dos "meliantes", os meganhas apreendiam também o material dos terreiros. E esse acervo foi se acumulando ao longo de décadas nos porões da polícia, formando uma espécie de memorial do preconceito. Para os representantes das religiões de matriz africana e para todos os verdadeiros cidadãos de bem, esse tesouro escondido tinha, um dia, de vir à tona. E veio, em tímida cerimônia no Museu da República, nesta segunda-feira, na presença de ícones como Mãe Meninazinha D'Oxum (Ilê Omolu Oxum), Mãe Palmira de Oyá (Ilê Omon Oyá Legi) e Pai Roberto Braga - Tata Luazemi (Abassá Lumyjacarê Junçara).
Eram 47 caixas de papelão. Nelas, atabaques, tambores, imagens, peças de oferenda. Estava tudo armazenado no Museu da Polícia Civil, no Centro, no antigo prédio do Dops, palco de tantas torturas e violações. Essa era apenas mais uma. Graças ao movimento 'Liberte Nosso Sagrado', as mais de 200 peças, tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), foram levadas ao Museu da República, após quase três anos de negociação entre o Ministério Público Federal (MPF) e a Polícia Civil do Rio de Janeiro.
Para o procurador da República Julio José Araújo Junior, que acompanha o caso pelo MP, o acervo agora terá gestão compartilhada com as comunidades religiosas. "É uma reparação, ainda que tardia, a essa violação que se perpetuou em torno da manutenção do acervo apreendido no Museu da Polícia. Essa violação é muito representativa de nosso passado e de nosso presente racista, que teima em mostrar sua face. Agora é dar visibilidade, não só às peças, mas à própria história".
O resgate desse tesouro é um alento e um alerta contra o preconceito e a intolerância religiosa. E um bom primeiro passo para simbolizar essa vitória é trocar o nome pelo qual o acervo era catalogado no Museu da Polícia: “Coleção Magia Negra”.