Monumento a Noel Rosa, na entrada do Boulervard 28 de Setembro, está vazio desde 2019Fábio Costa/Agência O Dia

Rio - Vila Isabel está há mais de dois anos sem um de seus maiores símbolos. Localizado na entrada do Boulevard 28 de Setembro, o Monumento a Noel Rosa encontra-se vazio desde abril de 2019, quando a estátua de bronze que homenageia o compositor foi recolhida pela Prefeitura do Rio, após ser alvo de vândalos e ter partes furtadas. Insatisfeitos com a demora nos reparos, moradores e comerciantes cobram providências. Na última quinta-feira, eles fizeram um ato simbólico e chegaram a levar uma 'réplica' da escultura para o protesto.

"Noel é o ícone maior do nosso bairro e representa muito para nós. A estátua foi retirada, e simplesmente ninguém fala mais nada. Já procuramos os órgãos competentes para saber sobre o reparo, mas ninguém dá uma posição. A estátua precisa ser consertada e devolvida", reclama o comerciante Jorge Artur Pedrosa, de 49 anos, dono da 'réplica' e presidente da VIA (Vila Isabel Associados), entidade que reúne moradores e o comércio. No dia 7 de julho, o coletivo protocolou ofício na IX Região Administrativa (Vila Isabel) cobrando uma solução.

"Vamos continuar cobrando e, quando a estátua for recolocada, queremos que o poder público coloque câmeras por perto, para impedir novas depredações. O bairro tem sofrido muito com crimes de furtos de peças de portões, hidrômetros, barras de toldos, placas de sinal... Tudo isso acaba sendo vendido para ferros-velhos, em muitos casos por moradores em situação de rua e usuários de crack", completa Jorge, que há sete anos encomendou uma 'réplica' feita em fibra de vidro para decorar seu bar na Rua Souza Franco. Após o fechamento do estabelecimento, a peça foi levada para a loja de material de construção de Jorge, na esquina das ruas Torres Homem e Silva Pinto, e virou sucesso entre os moradores.
Moradores e comerciantes de Vila Isabel, na Zona Norte, cobram recuperação da estátua de Noel. Grupo fez protesto usando 'réplica' - Fábio Costa/Agência O Dia
Moradores e comerciantes de Vila Isabel, na Zona Norte, cobram recuperação da estátua de Noel. Grupo fez protesto usando 'réplica'Fábio Costa/Agência O Dia


Filha de Martinho da Vila, a cantora Analimar Ventapane, moradora da região, lamenta. "Faz muita falta, porque é o espírito do bairro representado em uma estátua. É um descaso com a arte e com a cultura, dói muito. Eu lembro que a inauguração da estátua foi o maior barato. Quem chegava no bairro já via o Noel. Logo virou um ponto turístico. Quem é de Vila Isabel ama aquela estátua, era um point. Nós, da Unidos de Vila Isabel, fazíamos muitas gravações ali, principalmente em época de carnaval. Sempre tinha alguma coisa também na data do aniversário do Noel".

O pesquisador musical e biógrafo de Noel, Carlos Didier, vai além. "A destruição da estátua não tem relação com Noel. Não fizeram aquilo contra ele. Embora tenha ficado triste à beça, acho que aquele ato de vandalismo tem a ver com a decadência geral da cidade e do país". Nascida e criada no bairro, a escritora e ex-presidente do Museu da Imagem e do Som (MIS), Marilia Trindade Barboza destaca a importância da peça. "É um símbolo da musicalidade do local e motivo de orgulho não só dos moradores, mas de todos os cariocas. Infelizmente, todas as estátuas da cidade estão se tornado vítimas de vandalismo".

Em nota, a Secretaria Municipal de Conservação, responsável pelos monumentos da cidade, informou que está "realizando o levantamento orçamentário de todas as peças furtadas para fazer a licitação do Monumento a Noel Rosa. Trata-se de trabalho minucioso, cuja restauração será feita por Joás Passos, o mesmo artista plástico que, em 1996, criou a escultura em bronze. Após o último furto de partes do conjunto que compõem o monumento, as peças foram removidas pela Gerência de Monumentos e Chafarizes e guardadas em local seguro". A Secretaria afirmou, ainda, que não "tem previsão de data para a finalização do trabalho de recuperação".

Histórico de depredações

Inaugurado em 1996, o monumento retrata uma cena do músico sentado, fumando cigarro e sendo servido por um garçom, numa referência ao samba 'Conversa de Botequim', composto em 1935. A peça, concebida pelo artista plásico Joás Pereira Passos, acumula um histórico de furtos desde 2012.

No fim de 2015, ela foi pichada e teve três partes serradas: o braço esquerdo e o pé direito de Noel, além do braço esquerdo do garçom. Em abril de 2019, o vandalismo foi maior: levaram 'metade' do garçom e o braço direito do sambista. Dias antes, já haviam furtado o tampão da mesa e o encosto da cadeira 'reservada' aos visitantes.
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Estátua ficou 'mutilada' após ataques de vândalos e furtos em 2019 - Reprodução Redes Sociais
Estátua ficou 'mutilada' após ataques de vândalos e furtos em 2019Reprodução Redes Sociais


Eternizado em discos, peças, filmes e desfile

Noel de Medeiros Rosa nasceu em 1910 na Rua Teodoro da Silva, uma das principais de Vila Isabel. Considerado um dos maiores nomes da música brasileira em todos os tempos, ele morreu com apenas 26 anos, em 1937, deixando mais de 250 canções, entre elas 'Feitiço da Vila', 'Palpite Infeliz', 'Três Apitos', 'Último Desejo', 'Até Amanhã' e 'Pierrot Apaixonado'. Estrela da chamada 'Era de Ouro' da MPB, nas décadas de 1930 e 1940, Aracy de Almeida consagrou-se como a maior intérprete da obra do Poeta da Vila.

Outros grandes nomes também fizeram discos dedicados ao repertório do compositor, como Nelson Gonçalves, Maria Bethânia, Ivan Lins, Cristina Buarque, Martinho da Vila e Teresa Cristina. Em 1990, Carlos Didier e João Máximo lançaram 'Noel Rosa: uma Biografia', considerado até hoje o melhor livro sobre o bamba.

A trajetória de Noel virou, ainda, tema de peças, filmes e desfile de escola de samba, como em 2010, quando a Unidos de Vila Isabel homenageou o filho mais ilustre do bairro com o enredo 'Noel: a Presença do Poeta da Vila', ficando em quarto lugar. O samba-enredo trazia a assinatura de Martinho.

Confira letra da canção que inspirou a estátua
'Conversa de Botequim'

Seu garçom, faça o favor
De me trazer depressa
Uma boa média que não seja requentada,
Um pão bem quente com manteiga à beça,
Um guardanapo
E um copo d'agua bem gelada
Fecha a porta da direita
Com muito cuidado
Que não estou disposto
A ficar exposto ao sol
Vá perguntar ao seu freguês do lado
Qual foi o resultado de futebol

Se você ficar limpando a mesa,
Não me levanto nem pago a despesa
Vá pedir ao seu patrão
Uma caneta, um tinteiro,
Um envelope e um cartão
Não se esqueça de me dar palitos
E um cigarro pra espantar mosquitos
Vá dizer ao charuteiro
Que me empreste umas revistas
Um isqueiro e um cinzeiro.

Telefone ao menos uma vez
Para 34-4333
E ordene ao seu Osório
Que me mande um guarda-chuva
Aqui pro nosso escritório
Seu garçom me empreste algum dinheiro
Que eu dexei o meu com o bicheiro,
Vá dizer ao seu gerente
Que pendure essa despesa
No cabide ali em frente.
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Recuperação das Calçadas Musicais é outra demanda

Recém-criada, a VIA (Vila Isabel Associados) conta com uma sede na Rua Souza Franco, 254. Em fase final de obras, o local poderá ser um ponto de apoio aos policiais do programa Segurança Presente. "Vamos enviar o ofício a eles oferecendo", revela Jorge Artur.

"Queremos ser uma interface entre os moradores e o poder público. Queremos também nosso bairro cuidado e organizado. Ficamos muito tempo sem representação. Acabamos ficando esquecidos no cinturão da Grande Tijuca. A ideia é prestar um bom serviço de informação aos moradores, promover projetos e fortalecer o bairro", completa o presidente da Associação.

Outra demanda do grupo é a recuperação das famosas Calçadas Musicais da 28 de Setembro. Projetadas na década de 1960, elas reproduzem as partituras de canções antológicas, como 'Linda Morena', de Lamartine Babo, e 'Carinhoso', de Pixinguinha e Braguinha. "Elas estão completamente arrebentadas. As pedras portuguesas precisam ser recolocadas de maneira correta. É um patrimônio tombado que merece ser cuidado", finaliza Jorge.