E é mágico ver como grandes artistas conseguem ser magistrais e, ao mesmo tempo, simples. Eles sabem que as canções, uma vez interpretadas, passam a ser de cada um de nósArte: Kiko

"Caetano está aí", disse Maria Bethânia, de forma descontraída, para o maestro João Carlos Martins, com quem dividiu o palco ao som de orquestra na noite do último domingo, no Rio. A espontaneidade foi tanta que, por alguns instantes, eu me imaginei na sala de Dona Canô, a mãe dos dois grandes baianos, já falecida. A sensação era de que Bethânia não estava num local de espetáculos, mas em casa, ao lado do regente, e disse: "Olha, temos visita! É meu irmão".

E não era só uma impressão. O palco, é sim, sua morada. E é mágico ver como grandes artistas conseguem ser magistrais e, ao mesmo tempo, simples. Eles sabem que as canções, uma vez interpretadas, passam a ser de cada um de nós. "Olhos nos olhos, quero ver o que você faz/Ao sentir que sem você eu passo bem demais..."Quem viveu os encontros e desencontros do amor já se apoderou de versos como esses, escritos por Chico Buarque e eternizados pela baiana.

Com a sua voz, Bethânia parece reviver os sentimentos expressos nas letras durante a sua interpretação. É canto, mas é também um gestual nem um pouco contido. Afinal, "não me venha falar em prudência". "As paixões que me descontrolaram/São as que fizeram eu ser como sou": a composição de Tim Bernardes também pode ser de todos nós.
Ao se revelar em sentimentos, a artista se mostra gente como a gente. Assim como o maestro, sempre vibrante, ao reger a plateia na cantoria de 'Trem das Onze', de Adoniran Barbosa: "Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar..." A minha mãe era exatamente assim, e eu nem sou filha única.
Dessa forma, entoando as letras que a vida destinou para tantas pessoas, cantora e regente—com seus lindos tons grisalhos—ficaram muito próximos do meu mundo naquela noite, num espetáculo assistido ao lado da minha irmã. E há ainda uma composição que não foi tocada no show, mas que virou até título de um álbum de Bethânia, num tributo a Roberto Carlos e Erasmo Carlos: "Ficaram as canções e você não ficou..." Felizmente, as músicas sempre permanecem para (re)contar as nossas histórias.