Em determinado momento, olhei para aquele salão e pensei em como aquela cena, antes tão comum, não apenas rareou em nossas vidas como inexistiu por um bom tempo. Afinal, a pandemia tornou incomum os instantes ao vivo Arte: Kiko

Era manhã de quarta-feira. O rádio da cozinha, incrivelmente, estava desligado. A casa aproveitava um silêncio poucas vezes sentido. No sofá da sala, com as cortinas já abertas pelo meu pai, eu observava o dia ensolarado de inverno que amanhecia de forma acolhedora. Após a ligação costumeira para o meu amigo Macarrão, ouvi o canto do pássaro lá fora: bem-te-vi! Que raridade escutá-lo! Não por culpa dele, mas pela minha presença pouco frequente no cômodo naquele horário, disposta a ouvi-lo.
Essa percepção me veio à mente um dia após ter conhecido previamente a exposição 'Portinari Raros'. Entrei no CCBB-RJ, no Centro do Rio, numa terça-feira, justamente no dia em que o espaço cultural está fechado ao público. Estar ali, naquele local tão rotineiro mas num dia atípico, foi uma raridade tão grande que ainda não vislumbro uma nova chance de isso se repetir.
Assim, aproveitei também a chance de entrar num andar do prédio histórico que até então não conhecia. Antes da visita, uma recepção para os jornalistas no quarto piso fez os meus olhos brilharem. Fui atraída diretamente para o piano ali instalado, percorrendo toda a decoração do local com o olhar, na tentativa de fixar para sempre aquelas relíquias na memória. De raridade em raridade, ainda tive alguns minutos de prosa com João Candido, o filho único de Portinari, para falar da mostra com peças pouco ou nunca antes expostas de um artista tão conhecido. A surpresa reside até no que imaginamos já conhecer.
Em determinado momento, olhei para aquele salão e pensei em como aquela cena, antes tão comum, não apenas rareou em nossas vidas como inexistiu por um bom tempo. Afinal, a pandemia tornou incomum os instantes ao vivo.
Peguei todos esses momentos e os guardei numa caixinha de joias do coração, de onde brotam lindos solitários como presentes. O incomum é mesmo assim: caminha sozinho pelas nossas lembranças pelo fato de não haver nada igual. Isso me faz lembrar de amigos que reservam os seus elogios especiais e efusivos para os momentos mais do que bacanas: os extraordinários. Aqueles em que os pássaros invadem a nossa casa, como no canto singelo do bem-te-vi.